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Esqueça a palavra

27 janeiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone
evandro carlos jardim

Evandro Carlos Jardim, gravura em metal

Adriana Lisboa é reconhecida por seu trabalho literário em prosa, pelo qual já venceu prêmios como o Prêmio José Saramago, por Sinfonia em branco.

Parte da paisagem, sua mais recente publicação, porém, apresenta um outro lado, menos conhecido, de seu trabalho: sua produção poética. Trata-se de uma compilação de cinqüenta poemas, notáveis sobretudo pela musicalidade. Por entre temas variados, sua poética perpassa referências cinematográficas, esmiúça a vida por trás das letras – bem como seu caráter indicial de morte –, atravessa minúcias do cotidiano.

José Castello, em artigo crítico escrito para o jornal Gazeta do povo, define: “Enquanto escreve, o poeta trabalha, apenas, com uma parte do que é. Só uma parte da paisagem se revela, enquanto a outra, que se esconde, sustenta o poema, emprestando-lhe o caráter de armadilha. Poemas são ciladas — e, por isso, é sempre com grande cuidado que devemos lê-los. São engenhos para capturar partes da vida, sabendo que outras partes se mantêm ocultas. Ao leitor cabe trafegar entre o dito e o não dito. Entre o explícito e o oculto. Uma longa manta — como o véu de Isis — encobre as palavras”. Segundo o crítico, por “não aceitar explicações simplistas — aquelas que “explicam tudo” — o poeta está sempre a dizer “não”. Escreve Adriana: “Dizer não até/ a náusea”. Negar-se ao amor sem glória “em que só os condenados insistem”. Exigir a sombra e o desconhecido — exigir garantias de que há um caminho pela frente. O poeta é um ser da penumbra. […] Em uma realidade na qual tudo parece decidido, a poesia — que é casulo e paisagem vista só em parte — ainda pode nos oferecer isso. Ainda nos dá a chance, como Adriana sugere, de encontrar o necessário. “Você queria que as palavras/ fossem simples e poucas”, ela escreve. Palavras essenciais — ainda que encobertas pelo invisível”. Castello arremata que, diante “da paisagem que se esquiva e que só se revela pela metade, ao poeta resta a simplicidade para ver. A seriedade para abster-se e respeitar. Adriana nos dá assim uma breve lição de poesia — estranha lição sem instruções e sem advertências, que é só sugestão e entrega”.

Segundo o crítico, professor e também poeta Alcides Villaça, em resenha publicada no jornal O Estado de São Paulo, o livro cria um “paradoxo de altivez melancólica”, que resulta “em ironia sutil e refinada, é fonte de beleza, promove com delicadeza a transfiguração ácida de momentos vividos”. Para ele, a “poeta de agora já se firmara como prosadora, o que talvez faça entender certa cautela eventual ao atenuar a força bruta da metáfora, da imagem direta, pela prudência da comparação”, como na passagem “algo semelhante à colher / numa cela de presídio”, do poema Fresta. Segundo Villaça, a “poesia de Adriana Lisboa está engastada na tradição de uma lírica que não abdica da lucidez para a constituição da memória sensível. […] A inteligência de quem analisa vivamente as experiências pessoais e as reelabora com a consciência da cultura e da construção poética tende a sofrer a fome da simplicidade perdida […]. ‘Tirar da palavra a trava de proteção’ […] pode ser uma aspiração máxima de nossas verdade íntimas, mas não deixa de estar nas travas das palavras uma chave da poesia de nosso tempo. Parte da paisagem integra essa poesia com fôlego enérgico, acima dos clichês, no cultivo de uma arte que se reflete no espelho dos poetas críticos, com quem Adriana compartilha ‘essa nossa fé torta, exonerado o dogma”.

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Fresta

Pense na poesia

como o dedo cavando a fresta onde

há ainda uma pequena chance,

algo semelhante à colher numa cela

de presídio investindo contra

o chão de barro: um túnel,

a vaga ideia de liberdade.

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PARTE DA PAISAGEM

Autor: Adriana Lisboa
Editora: Iluminuras
Preço: R$ 28,70 (120 págs.)

 

 

 

 

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