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Desumanização

2 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone
Matisse

Matisse

“A ‘realidade’ assedia constantemente o artista visando impedir a sua evasão. Que astúcia não supor a fuga genial! Terá de ser a de um Ulisses às avessas, que se liberta da sua Penélope quotidiana e navega, entre escolhos, rumo ao bruxedo de Circe. Quando consegue escapar por um momento à perpétua cilada, não levemos a mal ao artista um gesto de soberba, um breve gesto à maneira de São Jorge, com o dragão jugulado aos seus pés”. 

 

No ensaio A desumanização da arte o filósofo espanhol Ortega y Gasset traça uma análise crítica sobre a estética e a história da arte desde o período romântico até às vanguardas do século XX, buscando as razões para a impopularidade das novas artes.

A primeira edição do ensaio “La Deshumanización del Arte” foi publicada em 1925, edição da biblioteca da Revista de Occidente que continha também o ensaio “Ideas sobre Ia novela”, posteriormente incluído no volume Meditaciones del Quijote.

Ortega y Gasset, aqui, debruça-se sobre a essência representativa do objeto estético, irônica, paródica, fraudulenta. Tratando de temas como o tabu, a metáfora, a iconoclastia, sua análise estética caminha sobre um terreno amplo que o conceito de desumanização lhe propicia. Trata-se de uma investigação filosófica e, sobretudo, sociológica sobre a paulatina autonomização da arte ao estado puro da estética, a arte enquanto racionalização e abstração crítica, não mais representação imediata.

A desumanização da arte elitiza os processos e artifícios artísticos, pois os engloba em um diálogo restrito, cuja compreensão e deleite dependem da manipulação conceitual e histórica de princípios, para Ortega y Gasset, burgueses. A impopularidade da nova arte é, pois, um dado sociológico.

O prazer estético compreendido sob um senso comum seria despertado ante o reconhecimento da presença humana imediata, da reprodução narrativa da vida e do mundo. As novas artes, evitando a representação real mimética, encerram um discurso para artistas e não para o público em grande massa, exigem do público um esforço de apreensão de novas percepções da realidade e tornam a obra um objeto daquilo que Ortega Y Gasset chama de “arte artística”.

A desumanização enquanto conceito funciona como divisão entre a arte nova e a arte feita anteriormente. Trata-se de uma distinção formal. A arte nova rompe com os padrões estéticos anteriores, estabelecendo uma relação conflituosa entre artista e público, impondo-lhe a necessidade de uma nova sensibilidade e ferramentas conceituais para a sua apreciação. O conceito implica os objetivos da nova arte: evitar formas vivas, tornar a obra apenas arte, considerando a arte como um jogo, pautada em uma total intranscendência e dotada de uma essencial ironia. Questões intimamente interligadas, formam a estrutura sobre a qual desenvolve-se a análise, que revela a positividade e mesmo necessidade da desumanização: em oposição à arte realista, ela inaugura um novo prazer estético. Se, por um lado para o realismo é suficiente a natural sensibilidade humana, por outro, o anti-realismo a renuncia em favor de uma sensibilidade pura, independente da remissão a um universo mimetizado. É assim que as vanguardas se deslocam do mundo vivido e instauram o postulado de uma arte artística.

A arte desumanizada estabelece um retorno das circunstâncias para o eu. A visão humana do mundo é interiorizada e abre espaço para a criação de novas realidades, nas quais a sensibilidade pura absorve a metáfora como coisa poética. Transforma-se a metáfora no próprio objeto da arte, não mais suporte da realidade. A arte, assim, amalgama real e irreal metafórico, autonomizando ambos por si mesmos: as próprias ideias em si mesmas, intrinsecamente ligadas às metáforas, ganham também autonomia – ponto culminante da desumanização artística.

 

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A DESUMANIZAÇÃO DA ARTE

Autor: Jose Ortega Y Gasset
Editora: Cortez
Preço: R$ 21,70 (96 págs.)

 

 

 

 

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