Guia de Leitura

Livros que desdobram conceitualmente o ato de ver

1 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone

O que se vê; como interpretamos o que vemos; o que a intermediação visual-cognitiva implica no modo de conhecimento.

Sociologia, fenomenologia, semiologia, história, teoria da arte: uma série de ciências desdobraram o ato de ver para questionarem o que, enquanto relação do homem com o mundo e condição de seus enunciados, ele pode revelar.

 

Jacques Derrida, “Pensar em não ver”

O livro Pensar em não ver: escritos sobre a arte do visível, do filósofo francês Jacques Derrida, reúne textos que foram produzidos ao longo de vinte e cinco anos, de 1979 a 2004, que configuram-se como testemunhos da reflexão sobre o primado filosófico do visível na arte, deslocada para questões de língua.

Ao colocar em questão a inteligibilidade da arte, Derrida a inscreve, junto com o visível de maneira geral, no centro de suas preocupações sobre a escrita, tematizando a idiomaticidade da arte. São, pois, mais do que reflexões sobre as artes visuais, investigações sobre a própria questão do que é visível que Derrida tece ao longo destes ensaios. O filósofo trata o visível como suporte de contrapontos entre o sensível e o inteligível, o luminoso e o obscuro.

Segundo ele, o problema do visível, seus limites e implicações, domina toda a história da metafísica ocidental. O deslocamento entre o que não é visível e o que é determina possibilidades de movimentação do pensamento. Estabelece a base de todos os valores do aparecer ontológico e fenomenológico – o fenômeno, a teoria, a evidência, a clareza ou a verdade, o “des-velamento” – que, por sua vez, instituem uma hierarquia dos sentidos.

 

Em O que vemos, o que nos olha, Georges Didi-Huberman parte do conceito benjaminiano de aura para investigar o que qualifica como a dialética do olhar: segundo ele, ao observarmos uma obra de arte, o olhar passa por um processo ao mesmo tempo de aproximação e de afastamento, pois há algo que nos olha naquilo que vemos. Durante a contemplação do objeto, ao passo que este é capturado pelo olhar, nos devolve o olhar, sendo, então, ele que nos captura. São duas distâncias opostas que se experimentam, dialeticamente. O próprio objeto torna-se o índice de uma perda que ele sustenta: “[…] apresentando-se, aproximando-se, mas produzindo essa aproximação como o momento experimentado ‘único’ e totalmente ‘estranho’ de um soberano distanciamento, de uma soberana estranheza ou de uma extravagância. Uma obra da ausência que vai e vem, sob nossos olhos e fora de nossa visão, uma obra anodiômena da ausência”. Entre a crença e a tautologia, forma-se esse espaço de distanciamento duplo, no qual pode ocorrer a interpretação crítica do presente e do passado. “Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho trás consigo sua névoa […]. Os pensamentos binários, os pensamentos do dilema são portanto incapazes de perceber seja o que for da economia visual como tal. Não há que escolher entre o que vemos (com sua conseqüência exclusiva num discurso que o fixa, a saber: a tautologia) e o que nos olha (com o embargo exclusivo no discurso que o fixa, a saber: a crença). Há apenas que se inquietar com o entre”.

Didi-Huberman, “O que vemos, o que nos olha”

 

O olho e o espírito reúne três ensaios que Maurice Merleau-Ponty dedicou às artes visuais: “O olho e o espírito”, “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” e “A dúvida de Cézanne”. O filósofo examina o modo como o corpo reage às sensações e se relaciona com o mundo: para Merleau-Ponty, a percepção é a via de acesso para a verdade e é, nos textos aqui reunidos, explorada em sua íntima relação com a pintura e outras formas de expressão. Os três ensaios retomam, de uma maneira bastante acessível, questões da obra mais conhecida do filósofo,Fenomenologia da Percepção.

Merleau-Ponty, “O olho e o espírito”

Segundo Merleau-Ponty, não há visão sem pensamento: a visão é um pensamento condicionado que nasce a partir da experiência do corpo. Cada coisa que se vê é fruto da escolha pessoal na visão daquele que a enquadra e captura. Portanto, a visão não é retrato da realidade objetiva, mas um filtro seletivo. O olho, neste processo, é um instrumento, que se move por si mesmo, ou seja, que cria seus fins através de seus próprios meios. O olhar, assim, resguarda a qualidade ontológica do ser humano, que é, a um só passo, vidente e visível; seres que tocam e que são tocados, formando um entrelaçamento no que chamamos de sensível. É exemplar para o filósofo, portanto, a atividade do pintor que, como Cézanne, amalgama-se à sua pintura, conciliando expressivamente corpo e visão, usando o próprio corpo para pintar e encarando a pintura como verdadeiro método de investigação filosófica sobre o conhecimento do mundo. Cézanne, para o filósofo, não queria apropriar-se da natureza, mas “elevar a sensação visual ao nível da consciência”; desenvolveu uma investigação inclusive ética e uma busca ontológica. O pintor se revela indiferentemente vidente e visível, o sujeito do objeto, o eu do mundo. Como ele, Merleau-Ponty não deseja falar sobre o mundo, mas, antes, fazer falar o mundo.

“A visão não é metamorfose das próprias coisas na sua visão, a dupla pertença das coisas ao grande mundo e a um pequeno mundo privado. É um pensamento que decifra estritamente sinais dados no corpo. A semelhança é o resultado da percepção e não a sua mola”.

 

O livro Suspensões da percepção: Atenção, espetáculo e cultura moderna, de Jonathan Crary, segue o caminho, metodológico e conceitual, aberto por Michel Foucault e reflete sobre um lugar comum: a noção de um olhar ativo na era moderna. Segundo Crary, porém, desde meados do século XIX o olhar é objeto de um processo cada vez mais intenso de disciplinamento.

Jonathan Crary, “Suspensões da percepção”

O autor compõe sua argumentação analisando pinturas emblemáticas de Manet, Seurat e Cézanne e contrapondo-as a tratados de ótica, por um lado, aos primeiros experimentos com o cinema, por outro. O livro assim constrói um panorama erudito sobre as transformações da visão contemporânea.

Segundo Crary, o século XIX vivenciou a ruptura do estatuto do observador, tendo sido, então, abandonado o modelo epistemológico da camera obscura, em favor de um novo modelo, vinculado à modernização da percepção a partir de um outro regime ótico: o do estereoscópio, que rapidamente inseriu-se na cultura do espetáculo nascente, vinculada a um novo regime de atenção, caracterizado por um continuum entre a atenção e diversas formas de desatenção, como o transe, o devaneio, o sonambulismo. Este novo modelo epistemológico, portanto, para Crary, não pode ser desvinculado do desenvolvimento e disseminação de transportes mecanizados nas cidades bem como da invenção de novas tecnologias de produção e reprodução de imagens: é deles decorrente. O autor embasa assim uma problematização acerca da atenção, que, então constituída por sucessivos estados de desatenção e de inibição, é intensamente sujeita ao controle e mesmo à patologização.

Crary, professor de arte moderna e teoria da arte na Universidade de Columbia, assim tece interessantes considerações sobre as significativas mudanças no regime de percepção, decorrentes da industrialização da no século XIX, e cujos impactos se estendem aos dias de hoje. Ele analisa a questão da atenção e da subjetividade modernas a partir da relação que encontra entre a percepção, a pesquisa científica e a experiência estética.

 

Paul Virilio, pensador francês, desenvolveu ao longo dos ensaios de A máquina de visão uma “filosofia contemporânea da lógica da velocidade”. Virilio realiza profunda interrogação sobre a formação da percepção moldada pelos processos culturais, cuja estrutura é construída sobre as relações entre a visibilidade e a invisibilidade e, entre elas, a sombra, que permite ocultar e manter reservado o que não se quer mostrar.

Paul Virilio, “A máquina da visão”

De acordo com Virilio, a invenção da videografia, da holografia e da infografia – computação eletrônica – marcou o início de uma nova era, a “era da lógica paradoxal”, na qual o espaço-tempo clássico transformou-se na realidade das imagens eletrópticas, através da “máquina de visão”. Essa mudança, decorrente da produção industrial de velocidade, acarretou transformações múltiplas, que vão desde as formas de pensar e existir individual e coletivamente, até as formas de se fazer a guerra.

Virilio encontra, no confronto entre a fotografia e o olho, a ilustração da contraposição de dois estágios diferentes de uma mesma “máquina de visão”: são dispositivos e componentes distintos, que, porém, operam a partir de uma mesma lógica. O autor estabelece portanto um paralelo entre a a percepção visual e os mecanismos tecnológicos de apreensão e reprodução do visível, aproximando a dimensão sensível do olhar a uma condição mecânica e desenvolvendo, assim, o conceito da “máquina” perceptiva, a “máquina de visão”, que é resultado de uma operação de disposições culturais. Ver, para Virilio, seria desta maneira um ato estabelecido por “máquinas culturais de visão”. A realidade, conclui, é percebida nos limites de molduras culturais, criadas por essas máquinas produtoras de imagens; e o mundo, apenas uma imagem.

 

 

O complexo ato de ver resguarda dimensões epistemológicas, ontológicas e estéticas. Sua investigação permeia também as reflexões histórico-sociológicas da própria dinâmica da sociedade entendida como espetáculo, enquanto palco de relações sociais intermediadas por imagens; modelo de sociedade que resguarda as relações de produção e consumo de mercadorias baseadas na dependência mútua dos processos de acúmulo de capital e de imagens, transformando as imagens, mercantilizadas, em instrumento de poder e de dominação social.

 

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