“Sou um tupi tangendo um alaúde!” – Mário de Andrade, “O trovador”, Paulicéia desvairada (1922).
Faltando menos de um mês para a homenagem a Mário de Andrade pela FLIP, uma de suas grandes comentadoras ainda não foi mencionada. Gilda de Mello e Souza, em O tupi e o alaúde, tece uma belíssima interpretação de Macunaíma. O livro, publicado originalmente em 1979, interveio como uma resposta crítica a Morfologia do Macunaíma [Perspectiva, 1973], de Haroldo de Campos. Gilda faz uma análise poderosa e original, tece uma crítica aberta ao diálogo, marcada pela articulação criativa entre pesquisas teóricas e profundidade interpretativa.
O ensaio tem três movimentos, parte da analogia entre a estrutura de Macunaíma e formas musicais, realiza uma defesa da ambiguidade e das fraturas da narrativa, para, apoiado em Bakhtin, inscrever a rapsódia brasileira na linhagem dos romances de cavalaria.
Para Gilda, uma “análise pouco mais atenta do livro mostra que ele foi construído a partir da combinação de uma infinidade de textos preexistentes, elaborados pela tradição oral ou escrita, popular ou erudita, europeia ou brasileira. A originalidade estrutural de Macunaíma deriva, deste modo, do livro não se basear na mímesis, isto é, na dependência constante que a arte estabelece entre o mundo objetivo e a ficção; mas em ligar-se quase sempre a outros mundos imaginários, a sistemas fechados de sinais, já regidos por significação autônoma. Este processo, parasitário na aparência, é no entanto curiosamente inventivo; pois, em vez de recortar com neutralidade nos entrechos originais as partes de que necessita para reagrupá-las, intactas, numa ordem nova, atua quase sempre sobre cada fragmento, alterando-o em profundidade”. É a partir daí que ela desenvolve sua crítica: “Deste modo, a designação de “composição em mosaico”, adotada por alguns estudiosos como Florestan Fernandes e Haroldo de Campos, parece inadequada; ela sugere a justaposição simples dos empréstimos tomados a sistemas diversos, mas oblitera a elaboração criadora complexa que, num primeiro momento, os desarticula, rompendo a sua inteligibilidade inicial para, em seguida, insuflar sentido diverso no agenciamento novo dos fragmentos. O processo talvez se aproximasse mais da bricolage, tal como a descreve Lévi-Strauss, e isso também já foi lembrado pela crítica”.
Como pontua Tatiana Batista, estudiosa da literatura comparada, em artigo publicado na revista acadêmica Palimpsesto, Gilda “alerta que não há apenas uma justaposição simples de elementos, mas que a união de vários significados acaba por desarticular o sentido primeiro destes para criar sentidos diversos, sobretudo, através de transformações que levam as imagens e os fenômenos da realidade cotidiana aos limites do fantástico”. Uma análise, de acordo com Batista, semelhante à de Bakhtin em Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, em que “observa como Rabelais absorveu as diversas manifestações populares e aplicou em sua obra com novos sentidos. A língua vulgar oral que entrava pela primeira vez no sistema da língua literária foi também trabalhada por Mário de Andrade, servindo para ambos os autores não só como a forma da narrativa, mas, sobretudo, como fonte de informação. A atitude de cada época em relação à língua literária e a concepção linguística dos autores se aproximam, mantendo as devidas proporções temporais”.
No entanto, Gilda vai além e diz: “Mais do que na técnica do mosaico ou no exercício da bricolage, é no processo criador da música popular que se deverá a meu ver procurar o modelo compositivo de Macunaíma”. Segundo ela, a “longa meditação estética que atravessa todo o percurso da obra de Mário de Andrade tem dois pontos de referência constantes: a análise do fenômeno musical e do processo criador do populário. É da confluência dessas duas obsessões fundamentais que deriva a maioria dos seus conceitos básicos, seja sobre a arte em geral, seja sobre a arte brasileira em particular; conceitos que uma vez forjados ressurgem sempre na extensa e variada produção ensaística”.
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“Escrito em seis dias de trabalho ininterrupto, durante umas férias de fim de ano, em dezembro de 1926; corrigido e aumentado em janeiro de 1927; publicado em 1928 — Macunaíma logo se transformou no livro mais importante do nacionalismo modernista brasileiro. A impressão fulminante de obra-prima, que os companheiros de Mário de Andrade tiveram na época ao tomar contato pela primeira vez com o manuscrito, permanece até hoje, cinquenta anos depois da sua publicação. Com o passar do tempo, as experiências de linguagem e a utilização satírica dos achados obscenos talvez tenham perdido a virulência; mas em compensação, à medida que os estudos sobre o livro vão se aprofundando, começam a vir à tona a segurança impecável de sua construção e a maestria no aproveitamento da cultura popular, que tece o pano de fundo colorido da aventura do herói brasileiro”.
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O TUPI E O ALAÚDE: UMA INTERPRETAÇÃO DE MACUNAÍMA
Autor: Gilda de Mello e Souza
Editora: 34
Preço: R$ 20,30 (96 págs.)