história

Sistema político e patrimônio privado

15 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Após algumas edições, publicadas por diferentes editoras, volta às livrarias o estudo Bases do autoritarismo brasileiro, do historiador Simon Schwartzman, agora pela Editora da Unicamp.

A primeira edição da obra foi realizada em 1975. Schwartzman questiona a própria possibilidade de desenvolvimento da democracia na sociedade brasileira, cuja história é marcada por três séculos de colonização e quase quatro de escravidão. Sua análise representa um marco na compreensão histórico-política do Brasil. A tese parte de uma advertência: que a redemocratização institucional seria apenas o imprescindível primeiro passo na construção da democracia brasileira. Seguindo este viés analítico, o autor contrapôs-se às duas principais tendências interpretativas da época: à historiografia marxista, para a qual tudo se resumia na falta de amadurecimento das classes sociais, e à ideia de um Estado todo-poderoso, sobranceiro à sociedade. Schwartzman relaciona o passado colonial e os sistemas político e econômico de caráter patrimonialista, do qual o Brasil ainda não liberou-se.

gravura de Hansen Bahia, da série "Navio Negreiro"

gravura de Hansen Bahia, da série “Navio Negreiro”

O sociólogo Bolívar Lamounier, em artigo reunido no livro O sociólogo e as políticas públicas: Ensaios em homenagem a Simon Schwartzman [FGV, 2009] diz: “Ressaltar a qualidade teórica e metodológica do estudo, a agudeza de suas elaborações histórico-empíricas, descrever a linhagem de notáveis sociólogos, escritores e ensaístas que Simon passou a integrar a partir desse livro — tudo isso é chuva no molhado. A qualidade intelectual do autor e a importância do debate que ele suscita dispensam testemunhos acadêmicos convencionais”. Lamounier, comentando o livro, resume: “Não tendo passado por uma revolução capitalista, temos, com efeito, um Estado que não se deixa moldar pela sociedade; ao contrário, ele é que tem historicamente moldado no nascedouro os interesses, as formas de organização e não raro os próprios partidos políticos e a composição dos legislativos. Estruturas de governo que, na Europa, haviam evoluído no sentido do sistema liberal-representativo e, posteriormente, no da democracia de massas, aqui, no nível nacional, ter-se-iam mantido virtualmente imutáveis como uma carapaça patrimonialista arcaica, mas dotada de meios adaptativos modernos o suficiente para não se deixar transformar estruturalmente”. O sociólogo indica que a “polaridade Estado × Sociedade configurou-se portanto como uma macroestrutura patrimonialista — vertical, autoritária e resistente à mudança — contra uma base social pobre e amorfa na maior parte do país. Eis por que a emergência de um subsistema político nitidamente diferenciado do dominante no país na região economicamente mais moderna, ade São Paulo, é chave na análise de Simon Schwartzman”. Na obra, Lamounier comenta, “o Estado não é um mero ventríloquo da burguesia ou uma simples massa na qual a economia burguesa imprime sua forma e seus objetivos. É um setor diferenciado dentro da estrutura social, organizado em linhas burocráticas e capaz de considerável protagonismo regulatório e até empresarial. Essa formação estatal relaciona-se com a sociedade através de mediações também sólidas e sedimentadas — o que Schwartzman denomina subsistemas de participação. Aqui o autor refina o seu arcabouço teórico comum a importante descrição de duas cruciais interfaces da sociedade com o sistema político: a representação e a cooptação”.

Schwartzman analisa as bases do autoritarismo brasileiro, partindo, portanto, do jogo entre centralização e descentralização na história política do Brasil, desde o período colonial até 1964. Opõe-se, por um lado, o Estado e sua máquina burocrática sufocante e, por outro, a sociedade civil sufocada. Seu respaldo teórico revisa brevemente as teorias de alguns dos principais pensadores que debruçaram-se sobre a questão do Estado, como Maquiavel, Rousseau, Hegel e Marx. A teoria do Estado patrimonial ou neopatrimonial parte do conceito weberiano, sob o qual compreende-se o Estado patrimonial como aquele que utiliza o poder burocrático para dominar todos os segmentos da sociedade, centralizando as decisões e impedindo o aparecimento de forças autônomas.

Segundo o próprio autor, o “interesse contínuo que o livro tem encontrado ao longo desses anos parece confirmar que a temática do autoritarismo brasileiro não é um simples fenômeno passageiro, mas tem raízes profundas e implicações que não se desfazem por meros rearranjos institucionais. Reconhecer isto não significa supor que o Brasil padece de um estigma autoritário congênito, paro qual não existe salvação. Mas significa, isto sim, que este passado e suas consequências presentes tem que ser vistos de frente, para que tenhamos realmente chance de um futuro mais promissor”.

Schwartzman tem, ao longo de ao menos quatro décadas, dedicado-se ao estudo de temáticas fundamentais para a compreensão da atualidade brasileira. Transitando da organização do sistema político à ciência e tecnologia e, mais recentemente, aos estudos sobre pobreza e política social, o sociólogo e cientista político mineiro oferece uma perspectiva, ao mesmo tempo histórica e comparada, que possibilita entender processos que constituem e caracterizam a sociedade no Brasil.

Bases do autoritarismo brasileiro é resultado de seu doutorado de em Ciência Política, desenvolvido na Universidade da Califórnia em Berkeley. Em entrevista ao Jornal da Unicamp, o autor pontua: “É um livro sobre a evolução do sistema político brasileiro, de suas instituições políticas. Uma de suas teses centrais é que existem diferentes formas de organização da atividade política. Elas podem ser explicadas, de maneira simplificada, como uma forma mais tradicional, organizada de cima para baixo, um Estado centralizado, autoritário, baseado em oligarquias regionais; e outro tipo de política com um caráter mais forte de participação. A estas duas modalidades eu chamava de sistemas de cooptação e de representação. No livro, eu procuro mostrar como, no Brasil, essas duas formas de política disputam espaço, com o predomínio do sistema de cooptação, que era uma aliança entre poder político na capital, Rio de Janeiro, com as oligarquias estaduais. Esta aliança não abria muito espaço à política de representação que se manifestava sobretudo a partir da região de São Paulo, que havia se desenvolvido historicamente à margem do centro político do país, com uma economia e uma sociedade mais moderna, que sempre esteve em tensão com o núcleo mais tradicional de poder. Esta é a tese do livro, que colocava em questão a ideia predominante de que o poder político era, por definição, uma decorrência do poder econômico. No caso do Brasil, eles estavam em constante conflito”.

Segundo o autor, o “patrimonialismo continua sendo um conceito importante, pois consiste da ideia que o sistema político é apropriado por grupos sociais que usam o poder como sua propriedade privada. É diferente da ideia clássica de representação, que pressupõe que o governo é formado por pessoas que representam os interesses da sociedade e que estão lá para defender estes interesses. No caso do patrimonialismo, o governo funciona como um grande empreendimento a serviço das pessoas que controlam essa máquina e se apropriam dos recursos públicos que o Estado detém. No Brasil, esse conceito continua sendo muito importante, porque boa parte da política brasileira funciona exatamente nesses termos”.

 

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Uma das teses centrais deste livro é que o Brasil herdou um sistema político que não funciona como “representante” ou “agente” de grupos ou classes sociais determinados, mas que tem uma dinâmica própria e independente, que só pode ser entendida se examinarmos a história da formação do Estado brasileiro. Esta tese parece incompreensível dentro de uma visão de corte marxista ou economicista convencional que tende a interpretar tudo o que ocorre em uma sociedade em termos de sua divisão de classes -, mas torna-se mais inteligível em uma perspectiva weberiana, que distingue e trata de maneira diferenciada os sistemas de classe, os sistemas de dominação política e os sistemas de privilégio social e status em uma sociedade. É pela perspectiva weberiana que podemos ver que o Estado brasileiro tem como característica histórica predominante sua dimensão neopatrimonial, que é uma forma de dominação política gerada no processo de transição para a modernidade com o passivo de uma burocracia administrativa pesada e uma “sociedade civil” (classes sociais, grupos religiosos, étnicos, linguísticos, nobreza etc.) fraca e pouco articulada. O Brasil nunca teve uma nobreza digna deste nome, a Igreja foi quase sempre submissa ao poder civil, os ricos geralmente dependeram dos favores do Estado e os pobres, de sua magnanimidade. Não se trata de afirmar que, no Brasil, o Estado é tudo e a sociedade nada. O que se trata é de entender os padrões de relacionamento entre Estado e sociedade, que no Brasil tem se caracterizado, através dos séculos, por uma burocracia estatal pesada, todo-poderosa, mas ineficiente e pouco ágil, e uma sociedade acovardada, submetida mas, por isto mesmo, fugidia e frequentemente rebelde.

 

Este padrão de predomínio do Estado leva a que ele se constitua, historicamente, com duas características predominantes. Primeiro, por um sistema burocrático e administrativo que denominamos, para seguir a tradição weberiana, de neopatrimonial, e que se caracteriza pela apropriação de funções, órgãos e rendas públicas por setores privados, que permanecem no entanto subordinados e dependentes do poder central, formando aquilo que Raymundo Faoro chamou de “estamento burocrático”. Quando este tipo de administração se moderniza, e segmentos do antigo estamento burocrático vão-se profissionalizando e burocratizando, surge uma segunda característica do Estado brasileiro, que é o despotismo burocrático. Do imperador-sábio D. Pedro II aos militares da Escola Superior de Guerra, passando pelos positivistas do Sul e tecnocratas do Estado Novo, nossos governantes tendem a achar que tudo sabem, tudo podem, e não têm na realidade que dar muita atenção às formalidades da lei.

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schwartzman

 

BASES DO AUTORITARISMO BRASILEIRO

Autor: Simon Schwartzman
Editora: Unicamp
Preço: R$ 37,80 (296 págs.)

 

 

 

 

 

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