As Novelas exemplares de Miguel de Cervantes Saavedra (1547 – 1616) foram originalmente publicadas em 1613, entre as publicações das duas partes de D. Quixote. Um volume completo das novelas acaba de ser lançado no Brasil pela Cosacnaify, edição cuidadosa com tradução de Ernani Ssó e textos críticos de Maria Augusta da Costa Vieira, Silvia Massimini Félix e Ernani Ssó. O livro é ilustrado por Vânia Mignone.
São “exemplares”, pois, como gênero literário, a novela já existia, mas, então, nunca fora escrita na Espanha nada que se assemelhasse a esta forma narrativa. Cervantes experimenta o gênero em todas as direções possíveis, com relatos bizantinos, cortesãos ou picarescos. Busca em sua prosa o estabelecimento de um padrão realista, tratando do cotidiano das pessoas, de uma Espanha palpável, vivida. Os 12 textos, escritos entre 1590 e 1612 e publicados originalmente juntos sob o título Novelas Exemplares de Honestíssimo Entretenimento, são o primeiro exemplo em castelhano de novelas, que, à época, possuíam um caráter moral e didático, ao qual Cervantes uniu seu humor gracioso, suas metáforas agudas e suas personagens, tão reais, tão humanas.
O seu desejo de dialogar com a criação literária estrangeira, utilizando uma forma que lhe parecia adequada à sua contemporaneidade, aparece explicitado no prefácio da obra: “A isto se aplicou meu engenho, por aqui me leva minha inclinação, e mais que dou a entender, e é assim, que sou o primeiro que novelei em língua castelhana, que as muitas novelas que nela andam impressas, todas são traduzidas de línguas estrangeiras, e estas são minhas próprias, não imitadas nem furtadas; meu gênio as engendrou, e pariu-as minha pena, e vão crescendo aos braços da imprensa”.
É interessante notar como Cervantes, nascido no seio de uma sociedade machista, reconhece e descreve dores femininas, além de criar protagonistas que são mulheres inteligentes e espirituosas, quando a sociedade as queria apenas lindas e submissas. É exemplar como o autor, com seu temperamento satírico, é hábil para despistar a censura, deixando transparecer, por entre exaltações aos reis e à Igreja, o retrato exato de país violento e sensual, trapaceiro e cobiçoso, em que o estupro, por exemplo, é aceito com naturalidade, e em que um casamento é o único sinal de respeito que se pode ter pelas mulheres.
A Cosacnaify disponibiliza um trecho para visualização.
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Trecho:
Parece que os ciganos e as ciganas vieram ao mundo 40/41 apenas para ser ladrões: nascem de pais ladrões, criam-se com ladrões, estudam para ladrões e, enfim, acabam ladrões de cima a baixo, de dia e de noite, e a vontade de furtar e o próprio furto são como que traços inseparáveis neles, que apenas a morte elimina. Assim, uma desta nação, cigana velha, que podia ser aposentada na ciência de Caco, criou uma moça como neta sua, a quem chamou de Preciosa e a quem instruiu em todas as suas ciganices, formas de logro e maneiras de furtar. A tal Preciosa se tornou a melhor dançarina que se viu entre os ciganos, e a mais bela e sagaz que possa se encontrar, não entre os ciganos, mas entre quantas belas e sagazes a fama poderia proclamar. Nem os sóis, nem os ares, nem todas as inclemências a que os ciganos estão sujeitos mais que outros povos puderam macular seu rosto nem curtir suas mãos; e, mais importante, o meio tosco em que foi criada não revelava nela senão ser nascida com maiores atributos que os de cigana, porque era cortês ao extremo e bem-pensante. Apesar disso, era um tanto desembaraçada, mas não de modo que revelasse algum tipo de falta de pudor. Na verdade, por ser arguta, era tão pura que em sua presença nenhuma cigana, nem velha nem jovem, ousava cantar canções lascivas nem dizer grosserias. Enfim a avó descobriu o tesouro que tinha na neta e, por isso, a águia velha resolveu botar sua aguiazinha a voar e ensiná-la a viver com suas próprias garras. Preciosa saiu rica de vilancicos, coplas, seguidilhas e sarabandas, e de outros versos, especialmente de romances, que cantava com especial galhardia. Porque a velhaca de sua avó percebeu que tais canções e habilidades, mais os poucos anos e a grande formosura da neta, haviam de ser felicíssimos atrativos e incentivos para aumentar seu cabedal. Assim, procurou-as por todos os meios que pôde, e não faltaram poetas que as dessem, porque também há poetas que se dão bem com ciganos, e vendem a eles suas obras, como existem poetas para cegos, a quem fingem milagres e vão pela parte do lucro. Há de tudo no mundo, e a fome talvez lance os talentos em coisas que não estão no mapa.
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Autor: Miguel de Cervantes
Editora: Cosacnaify
Preço: R$ 55,30 (544 págs.)