“Ao testemunhar tua aparição, descobri que a proximidade, a mais intensa, se dá junto da distância mais distante.”
Sabedoria do nunca [1999], Ignorância do sempre [2000], Certeza do agora [2002], são livros que traçam a temática que atravessa toda a obra de Juliano Garcia Pessanha: uma reflexão sobre a precariedade do ser, preso nos cárceres da linguagem, subjugado às violências inerentes à necessária apropriação do existente pelo olhar utilitarista da técnica. Uma investigação poético-filosófica à qual dá prosseguimento Instabilidade perpétua [2009], em que o autor dialoga com filósofos, tais como Heidegger, Cioran e Sloterdijk, e com escritores, como Kafka e Gombrowicz.
A Cosacnaify acaba de lançar esta tetralogia em um volume único, intitulado Testemunho transiente. A edição conta com texto de orelha de Roberto Machado e texto de quarta capa de Jean-Claude Bernadet.
Os quatro livros transitam por diferentes gêneros, entre aforismos, poesia em prosa, ensaio filosófico, contos, autos e heterotanatografia. Grande parte da peculiaridade da escrita de Pessanha está neste hibridismo de formas em que, dinâmico e versátil, diferentes gêneros aparecem simultaneamente. Deste modo, por exemplo o que poderia ser classificado como escrita de si, é também um belo ensaio sobre Heidegger e a atualidade; ou mesmo um ensaio sobre Kafka pode resguardar um comentário profundamente autobiográfico. Seus textos, assim, tomam emprestados muitos eus para a formação de si próprio. A temática fundamental de sua obra examina a questão da diferença entre nascer para fora e nascer para dentro do mundo, uma investigação que, do ponto de vista filosófico, equivale a uma onto-topologia testemunhal.
Alguns importantes críticos e intelectuais brasileiros já debruçaram-se sobre a obra de Juliano Garcia Pessanha, em que os deslocamentos pelos quais o próprio corpo é escrito desvelam uma poética do encontro, entre eles Alcir Pécora, Franklin Leopoldo e Silva e Leyla Perrone-Moisés.
Em entrevista promovida e divulgada pelo Paulicéia Literária, ao ser questionado sobre o processo de publicação, uma vez que seus livros são baseados em seus diários, Pessanha disse: “Comecei com os diários sem uma destinação pública, um endereçamento tão claro; quando meus livros começaram a ser publicados, eu estranhei, era como se aquilo que eu escrevia nas madrugadas, com a espinha gelada de tremor jovem, chegasse ao mundo. Inicialmente eu não consegui compreender direito. Atualmente não faço mais diários. Hoje o diário não é algo tão comum, pois as pessoas tornam as coisas públicas imediatamente, em mídias abertas como Facebook, por exemplo. Antigamente o diário tinha um tempo diferente, funcionava mais ou menos como um escape para quando a pessoa vivesse uma experiência muito intensa, e ela escrevia ali para digerir. O diário me servia como um esforço de formulação de experiências intensas que ultrapassavam o meu repertório. Os meus livros surgiram inicialmente disso. Mas ainda é estranho, mesmo agora que trabalho para uma grande editora, ainda me é surpreendente”. Na mesma entrevista, ele disse, a respeito da interessante mistura de gêneros de seus textos e sua conseqüente difícil classificação: “Meus livros são como centauros, ou animais híbridos; eu brinco que sou um transexual ontológico nesse sentido. Não dá para dizer se é testemunho, relato de análise, filosofia, literatura… é tudo isso, mas não é nada disso. É um ensaio sobre Kafka, mas ao mesmo tempo uma autobiografia. São livros singulares. Esse corpo que passa pela Terra, eu, se sente dito neles, naquilo que é mais único, apesar de não se encaixar em algo já dado. É uma escrita de afeto, um testemunho dos lugares por onde meu corpo já passou”.
O professor Franklin Leopoldo e Silva, em artigo crítico soibre o primeiro dos quatro livros, Sabedoria do nunca, comenta: “A ficção constitui uma modalidade crítica de negar o mundo porque nos obriga a reconhecê-lo pelo percurso das mediações do estranhamento; a poesia nos desperta da inércia semântica quando revoluciona as significações habituais e nos atira para fora do trato rotineiro com as palavras; a teoria mostra o ineditismo das coisas que sempre julgamos decifrar com segurança. São as três maneiras, entre muitas outras, pelas quais o texto nos atinge e nos inquieta, encaminhando-nos para o limite da experiência do mundo e de nós mesmos, ponto em que todas as respostas reais e possíveis se concentram numa pergunta que, de tão originária, é impossível de ser formulada objetivamente, devido às limitações internas que constroem as passagens de um dizer a outro. A prosa limita a poesia e o ensaio limita a prosa: essas transições ao outro como forma de impedir que qualquer identidade se fixe e se constitua para sempre inventam o nunca acabado de cada escrita – o fim de uma é o começo de outra, e um outro começo que impede a continuidade do mesmo, de modo que há sempre um caminho e nunca um destino. É o paradoxo dessa viagem que nos faz aceitar a fatalidade da pergunta irrespondível: onde levam os caminhos que não levam a parte alguma?”. Porém, Franklin Leopoldo prossegue: “A última coisa que se deve esperar dessa pergunta é a sua pertinência, que só poderia existir se nos sentíssemos confortáveis neste mundo que nos é apresentado, e então não seria necessário fazê-la. No caso deste Sabedoria do nunca, o leitor a formula porque deseja, tanto quanto o autor, passar do pseudônimo ao nome: adentrar a desordem constituída, nomeá-la nomeando-se, reconstruir a identidade por meio da heteronomia, atingir o cuidado de si no limiar da própria perda – para então assumir conscientemente a origem pela qual nunca se é responsável, o próprio nascimento, esse mistério das limitações internas ao nosso surgir para a existência. A pluralidade das formas do dizer expressa essas limitações, já que as passagens de um perfil a outro das palavras querem testemunhar as incompletudes que se sustentam umas às outras, para que a autonomia da palavra poética não venha a ser o isolamento da poesia; a transitividade da prosa não enseje a dependência da recepção; para que a suficiência do ensaio não leve o pensamento ao autismo conceitual. Três recusas: a cristalização da subjetividade, a banalização intersubjetiva e a instrumentalidade anônima da palavra”.
Para o professor, haveria “muito o que dizer da forma como o autor trabalha a encenação intramundana da existência e da subjetividade. Ele o faz a partir de uma leitura de Heidegger e da Psicanálise que os solicita a irem além de si mesmos. Contentemo-nos em apontar algumas questões relativas à temporalidade, que não se localizam apenas no ensaio, mas estão presentes na narrativa e nas poesias que constituem as outras partes do livro. Creio que se pode falar de algo como uma transignificação das categorias temporais. Pois, na medida em que o sujeito fala de si referindo-se a um presente ainda não existencialmente constituído, apenas pressentido, há uma espécie de intersecção de cenários passado/presente, já que é preciso falar a partir do passado para pressentir o presente”.
Segundo o crítico Alcir Pécora, em comentário publicado pela Revista Cult, há, “na literatura de Juliano Garcia Pessanha, a ideia de “singularidade” do sujeito se inscreve no âmbito de uma noção de “natalidade” dolorosa, que perdura ao longo da vida, surgindo à consciência menos como um esclarecimento do que um abismar-se diante do que parece esquecido ou domado. Esta é, paradoxalmente, a esperança de que a lucidez se mantém: apenas a dor persistente desse momento resistente à cura e à normalização do curso da vida pode fazer frente ao nada presentificado. A consciência nada tem de plena; como, por vezes, sequer alcança um fio de enredo familiar, mal se distingue de uma espécie de “aparição”, uma presença assombrada. O paradoxo postula, portanto, que a dor pode se tornar aliada de uma pessoalidade adversa à neutralização da experiência. A busca de si equivale a uma travessia na qual o sujeito nada leva consigo, a não ser uma perigosa “confiança” – uma “esperança radical”, como diria Jonathan Lear – no ser destituído pelo presente, cujo caminho de destruição admite trilhar até o fim”. Há, para Pécora, um “veio transcendental da prosa de Juliano Garcia Pessanha”, cuja obra merece ser descoberta.
Nascido em 1962, o paulistano Juliano Garcia Pessanha estudou Direito, formou-se e pós-graduou-se em Filosofia, além de ter tornado-se mestre também em Psicologia.
Os quatro livros já haviam sido publicados, pela Ateliê Editorial, mas encontravam-se esgotados.
A Cosacnaify disponibiliza um trecho para visualização.
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Trecho:
SEGREDO DE UMA ESCRITA III
Quando eu morava no lado de fora, o ato de escrever me fingia a ilusão do dentro. Assim, durante anos, fui anotando tudo em meus diários a fim de provar que eu vivia alguma vida: banhos prolongados, masturbações infinitas, o som de jornais polpudos esparramando-se no quintal, os desenhos que eu me fazia no braço com esferográficas, as noitadas, onde eu alcançava níveis de caos e intensidade bastante altos para minha década-cidade, as calamidades histriônicas que me levavam à consumação abrupta de litros de cachaça, a contagem de hematomas e de gânglios; tudo isso eu anotava, e essa vida anotada nos diários ardia na chama indefinida da falta de uma vida. Fazendo tudo que escrevia e escrevendo tudo que tentava fazer, eu era um bloco só, uma argamassa única de escrita e de existência.
O olho assistia à argamassa e pairava sempre a presença da dúvida, a pendência do desassossego. Aconteceu? Comigo ou não?
Afinal, o que encobria essa “doença” misteriosa?
Foi assim que vaguei por Trieste num verão. (Não me lembro de ainda não conhecer o grande Svevo.) Mergulhei no cais e entrei numa farmácia. Uma mulher muito bonita, de boca semiaberta, me atendeu. Errei, de madrugada, pelos canais de Trieste e, quando olhei uma janela iluminada, fui raptado pelo sopro de uma turbulência onírica. Antes do amanhecer começou a chover, e eu não pude ver a chuva molhando a cidade sem tirar toda a minha roupa para senti-la em mim também.
Eu tinha dezenove.
Eu jamais estive em Trieste.
[trecho divulgado pelo caderno Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo]
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Autor: Juliano Garcia Pessanha
Editora: Cosacnaify
Preço: R$ 30,03 (320 págs.)