Acaba de ser publicado o livro Mocambos e quilombos – Uma história do campesinato negro no Brasil, do historiador Flávio dos Santos Gomes, pela Companhia das Letras.
Trata-se de um estudo sobre a existência, por todo o Brasil, de comunidades negras rurais que são remanescentes de quilombos – concretude da continuidade social e histórica de um processo mais longo da escravidão e das primeiras décadas da pós-emancipação do que se costuma supor. As comunidades de fugitivos da escravidão não representam, nas palavras do autor, um passado imóvel, “aquilo que sobrou (posto nunca transformado) de um passado remoto. As comunidades de fugitivos da escravidão produziram histórias complexas de ocupação agrária, criação de territórios, cultura material e imaterial próprias baseadas no parentesco e no uso e manejo coletivo da terra. O desenvolvimento das comunidades negras contemporâneas é bastante complexo, com seus processos de identidade e luta por cidadania”. O livro repassa a história dos quilombos, e seus desdobramentos, do passado e do presente.
O autor aponta, sobre a terminologia, que, como indicara o historiador Stuart Schwartz, “ao longo do século XVIII — na documentação colonial — as comunidades de fugitivos foram denominadas ao mesmo tempo de mocambos, principalmente na Bahia, e de quilombos em Minas Gerais; e o termo quilombo apareceu em Pernambuco somente a partir de 1681. Assim, mocambos (estruturas para erguer casas) teriam se transformado em quilombos (acampamentos), e tais expressões africanas ganharam traduções atlânticas entre o Brasil e a África desde o século XVI”. Segundo Gomes, os quilombos e mocambos formavam-se “quase sempre a partir dos escravos fugitivos. Dos canaviais e engenhos do Nordeste surgem as primeiras notícias de fugas de escravos e a constituição deles em comunidades. Data de 1575 o primeiro registro de um mocambo, formado na Bahia”. E desmistifica: “nem toda fuga gerava um quilombo e nem todo fugitivo planejava ir em direção àqueles já existentes. Fugir era uma ação muitas vezes planejada, não significando um simples ato de desespero diante de castigos. Havia ocasiões consideradas propícias e muitas escapadas coletivas foram antecedidas de levantes ou motins”.
A fuga era uma resposta, uma forma de protesto. Diz o autor: “As sociedades escravistas conheceram várias formas de protesto. Insurreições, rebeliões, assassinatos, fugas e morosidade na execução das tarefas se misturavam com a intolerância dos senhores e a brutalidade dos feitores. Chicotadas, açoites, troncos e prisões eram rotineiros. Assim como as notícias sobre fugitivos. Talvez fugir tenha sido a forma mais comum de protesto”.
A economia escravista, predominantemente baseada na monocultura, pela exigência de trabalho extremo, simplesmente destituía a possibilidade de qualquer cultura de subsistência, cuja consequência era a escassez de alimento e a extrema miséria do trabalhador escravizado; a isso acresce-se o sustento racionado que os senhores concediam-lhe, pois, pela lógica do escravismo colonial, não cabia ao fazendeiro preocupar-se com as condições de sustento do cativo – a perda de escravos por morte demandava nada mais que sua reposição por novos braços, artigo barato e de oferta abundante no mercado. Paradoxo que conhecemos, o escravo, gerador de toda a riqueza colonial, sucumbia, à míngua de víveres. A abolição da escravidão, portanto, era acompanhada pela ideia de abolição do próprio latifúndio; como o mostram as palavras de Joaquim Nabuco: “Precisamos […] empregar no trabalho rural toda essa população inativa, privada de trabalho e para o gozo da qual nós deveremos reconquistar a terra de que a escravidão fez um monopólio, por meio de um novo imposto que é uma necessidade da situação – o imposto territorial”.
No artigo “Memória, cidadania e direitos de comunidades remanescentes (em torno de um documento da história dos quilombolas da Marambaia)”, escrito em conjunto por Gomes e Daniela Yabeta, a atualidade da questão é colocada de maneira clara. Dizem os autores: “Nas últimas duas décadas, dois temas fundamentais da sociedade brasileira (e do pensamento social do século XX) se cruzaram em termos de lutas sociais, políticas públicas e ações judiciais: a questão agrária e as políticas de promoção da igualdade racial. Lutas históricas pela reforma agrária ganharam, desde o final da década de 80, mais e outros capítulos com a mobilização das comunidades remanescentes de quilombos”. Segundo eles, mais “do que uma disputa política com desdobramentos parlamentares, estão em jogo perspectivas de identidade, territorialização e autorreconhecimento das comunidades quilombolas. Quem define que uma comunidade rural negra é remanescente de quilombo? Tão somente sua história, cultura, memória social e identidade autodeclarada de sua população? Ou a burocracia do Estado, com ações de comprovação documental, perícia e laudos antropológicos, históricos ou arqueológicos?”. Seu texto desenvolve-se no sentido de realizar uma articulação entre “diversas áreas do conhecimento sobre experiências da escravidão, pós-Abolição e a realidade atual das formas camponesas no Brasil, especialmente aquelas das comunidades remanescentes de quilombos”. Segundo Gomes e Yabeta, nos “debates contemporâneos sobre os direitos étnicos das comunidades quilombolas a terra, a ação (teórica e prática) dos antropólogos tem sido decisiva. Em parte, seguindo uma rica tradição acadêmica, os estudos sobre sociedades indígenas e também sobre as formas camponesas foram fundamentais na “tradução” pública das questões da identidade étnica e dos territórios. Mesmo diante da posição contrária (com forte apoio de setores da mídia e alguns articulistas oportunistas) de determinados partidos políticos, parlamentares conservadores e ruralistas, há hoje uma definição consagrada – em parte recuperada por pesquisas etnográficas, modulações teóricas e a memória camponesa – de que é quilombola e remanescente de quilombo quem diz que é quilombola e remanescente de quilombo, a partir da sua história, identidade, territorialidade, uso da terra e recursos naturais, além da cultura material e imaterial. Também o quilombo e/ou a comunidade remanescente não foi e nem é um território isolado. Sempre houve conexões de produção e mercantilização de base camponesa, também com o caráter migratório, itinerante e nunca tão somente fixo. Tanto no passado do quilombo histórico como na realidade atual das comunidades remanescentes. Enfim, ontem e hoje os quilombos e/ou comunidades se encontravam e se encontram onde estavam ou estão os quilombolas. De ontem e de hoje”.
A multiplicação dos aquilombamentos nos sertões do Brasil e das fugas de escravos foram fatores profundamente marcantes para a história social, política, econômica e demográfica do Brasil.
A historiadora Maria do Carmo Brazil, em artigo sobre a formação do campesinato negro no Brasil, diz, por exemplo, que os “documentos oficiais evidenciam a presença de quilombos nas cercanias urbanas, nas proximidades das veredas mais frequentadas, cujos membros recorriam à pratica de pequenos furtos. Muitos quilombolas vendiam os produtos roubados em vendas e tabernas localizadas nas proximidades dos núcleos de produção. Em geral, nesses locais, trocavam produtos como ouro, diamante, açúcar, café, cereais, etc., por doces, garrafas de aguardentes, rolos de fumo e outras mercadorias apreciadas. Alguns registros oficiais de Mato Grosso mostram a autossuficiência econômica de alguns quilombos, a luta dos quilombolas para manter a liberdade e o aliciamento de escravos por calhambolas. As autoridades reclamavam que estes fugitivos promoviam, sobretudo a partir de 1871, fugas coletivas, visando o fortalecimento dos seus aldeamentos: ‘ […] em diversas ocasiões os [calhambolas] atacaram as fazendas e sítios tomando mantimentos, mas o maior dos males e o alento que dão fuga de outros escravos, a quem oferecem guarida acabando por aumentar os seus arranchamentos’. (Livro de Ofícios /Presidentes da Província de Mato Grosso – 1871-1878)”.
Flávio dos Santos Gomes é autor também do livro A hidra e os pântanos – Mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (Séculos XVII-XIX) [Unesp, 2005], no qual também segue as trilhas das histórias dos mocambos, mostrando que aqueles formados na capitania da Bahia, ao lado de Palmares, na capitania de Pernambuco, e dos quilombos na capitania de Minas Gerais, foram os mais citados pela historiografia do tema. Sua análise histórica cobre, porém, também as regiões do Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso e, sobretudo, Grão-Pará e Maranhão.
Gomes investiga histórias “entrecortadas por perseguições e destruição, poucos períodos de paz, ataques de brancos e até de índios – é possível focalizar como alguns deles, resistindo à escravidão, constituíram-se em comunidades negras que interagiram com a sociedade envolvente”. Em sua pesquisa, o historiador aponta a originalidade – uma vez que vários estudos sobre quilombos têm destacado as relações sociais complexas que os cercavam – e analisa a produção, pelos quilombolas coloniais, de algumas experiência de campesinato negro, envolvendo a economia dos mocambos, roças dos escravos, lavouras de alimentos e o abastecimento de mercados locais.
A Companhia das Letras disponibiliza um trecho de Mocambos e Quilombos para visualização.
Autor: Flávio dos Santos Gomes
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 24,43 (240 págs.)