Guia de Leitura

Anatomia da melancolia

23 outubro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

A melancolia, diz Robert Burton, pode ser uma disposição, ou um hábito. Sua monumental Anatomia da melancolia trata da melancolia não enquanto disposição, seu sentido atualmente mais usual – como descontentamento, angústia, tristeza, depressão –, mas enquanto hábito, ou mesmo uma mania, um humor fixo, portanto dificilmente removível.

Publicada originalmente em 1621, esta é uma obra-prima, filosófica, psicológica, literária. Burton compilou todo o material então disponível para, a partir da melancolia, investigar e explicar todas as emoções humanas, bem como suas causas “psíquicas”.

A edição brasileira, publicada com a ótima tradução de Guilherme Gontijo Flores – tradução vencedora do prêmio Jabuti 2014 –, pela editora da UFPR, traz o texto em quatro tomos:

 

Robert Burton, "Anatomia da melancolia" - volume I - Demócrito Júnior ao leitor

Robert Burton, “Anatomia da melancolia” – volume I – Demócrito Júnior ao leitor

O primeiro volume intitula-se Demócrito Júnior ao leitor. Burton escreve, sob esse pseudônimo – homenagem ao “filósofo que ria”, de acordo com a descrição de Hipócrates –, este prefácio sarcástico.

O tradutor, Guilherme Gontijo Flores, no artigo “A anatomia no Brasil”, publicado na revista Anamorfose, explica: A persona de Demócrito ajuda na construção de uma escrita constantemente irônica, com bases na obra de verve satírica do autor grego Luciano de Samósata e nas suas estruturas similares à fábula menipeia; além de uma persistente auto-derrisão que muitas vezes põe em cheque o que o próprio autor parece defender e acaba deixando o leitor desnorteado, ou, quem sabe, convidado a tomar parte no pensamento, a largar o comodismo do leitor passivo. O livro, como venho dizendo, é amplíssimo e abarca muitos autores, épocas e temas; várias partes, ainda que integradas na totalidade do livro, são praticamente ensaios separados (inclusive são traduzidos separadamente, vez por outra): “A digressão do ar” é um dos primeiros ensaios ocidentais sobre climatologia, “A melancolia religiosa” é o primeiro estudo detalhado sobre o assunto; seu estudo psicológico do sexo antecipa Havelock Ellis e Bernard Shaw; enquanto no prefácio encontramos uma Utopia burtoniana que se parece com a de Wells; seus comentários sobre ações contrárias à consciência podem elencá-lo num grupo de psicanalistas avant la lettre. Burton revela-se um sonoro economista político, protecionista, oponente dos monopólios, inimigo da guerra, defensor de melhores estradas, das irrigações terrestres, das construção de jardins, das pensões para os idosos, da sexualidade humana, do desejo feminino, etc. Resumindo: um livro assentado sobre livros, mas capaz de invocar o humano de quem o lê”.

 

 

Robert Burton, "Anatomia da melancolia" - volume II - A primeira partição – causas da melancolia

Robert Burton, “Anatomia da melancolia” – volume II – A primeira partição – causas da melancolia

O segundo volume, A primeira partição – causas da melancolia, dedica-se à descrição da condição melancólica e suas inúmeras causas.

Como explica e contextualiza a psicanalista Maria Rita Kehl, em texto disponível em seu site: “Não é alegre o riso do melancólico: é expressão de seu escárnio diante das ilusões alheias. Burton, que foi bibliotecário em Oxford, leu toda a literatura sobre a melancolia disponível até o início do século XVII para tentar dominar seu próprio mal. Tal empreitada só era possível em uma época em que a melancolia era entendida não apenas como uma doença, mas como um fenômeno da cultura”.

O jornalista Marcelo Coelho, em artigo publicado no caderno Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo, aponta que o termo, “no século 17, correspondia a muito mais coisas do que à simples tristeza ou depressão. Todo tipo de delírio, imaginação extrema, furor lascivo –desde que sem febre – era entendido como ‘melancolia’. Melancólico era Dom Quixote, da mesma maneira que Hamlet, ou que o apaixonado Romeu, ou ainda a mulher de Macbeth, tentando inutilmente limpar das próprias mãos as imaginárias manchas de sangue de seus crimes. A palavra vem do grego ‘melas’, negro, e ‘chole’, bile. A bile negra seria um dos quatro ‘humores’ produzidos pelo corpo, ao lado do sangue, da fleuma e da bile amarela ou ‘normal’. Esses humores podiam ser quentes, como o sangue, ou frios, como a fleuma -cuja função é umedecer as várias partes do organismo, como as juntas, a língua e os olhos”.

 

 

Robert Burton, "Anatomia da melancolia" - volume III - A cura da melancolia

Robert Burton, “Anatomia da melancolia” – volume III – A cura da melancolia

O terceiro volume, A cura da melancolia, compila uma quantidade de curas diferentes quase tão grande quanto a de causas. Alguns exemplos são abrir hemorroidas com sanguessugas ou receitas mais complexas, como “tomar a cabeça de um carneiro que nunca copulou com uma ovelha, cortá-la num só golpe e retirar apenas os chifres, fervê-la bem com pele e lã; […]. Guardar o preparo e por três dias ministrar ao paciente em jejum, de modo que ainda jejue por mais duas horas. Pode ser comido com pão, numa omelete, ou num caldo, ou de qualquer modo mais agradável. Que ele proceda com a dieta por 14 dias, sem beber vinho”.

Toda a tessitura da obra constrói-se sobre a erudição de Burton, que tudo ilustra com anedotas, poemas, movimentos retóricos contrapondo autores. Sua visão é fascinante, extrapola a especificidade de pesquisa da melancolia, fornecendo um rico panorama político, cultural, ético, religioso.

No artigo supracitado, Coelho adverte: “Se o leitor não se diverte com enfiadas de nomes, com sequências vertiginosas de palavras praticamente equivalentes, com labirintos de exemplos e contraexemplos que terminam sem concluir coisa nenhuma, é melhor que deixe de lado a Anatomia da Melancolia”. Porém, aos que têm tempo e “humor” para acompanhar a erudição coloquial de Burton, “a exuberância das palavras, das associações, dos “causos” e das referências que preenchem todas essas páginas produz um efeito contagiante, embriagador. Nada menos melancólico, no sentido moderno do termo, do que a A Anatomia da Melancolia. Percebe-se um autor que sorri o tempo todo, que não se cansa nunca, que se delicia no seu tesouro de erudição”.

 

 

Robert Burton, "Anatomia da melancolia" - volume IV - A terceira participação

Robert Burton, “Anatomia da melancolia” – volume IV – A terceira participação

O quarto volume, A terceira participação, com suas mais de 800 páginas, é inteiramente dedicado a dois subtipos especiais de melancolia: a amorosa e a religiosa – que, segundo Burton, não deixa de ser também um tipo de amor.

Marcelo Coelho define uma mudança de tom, ao longo deste último volume, que torna-se “ainda mais corrosivo”: “Depois de escrever, com muita desinibição, sobre casos de priapismo, sobre paixões entre mulheres e ursos, sobre jovens que tentam descobrir a data de seu casamento jogando cebolas como se fossem búzios, sobre os que se suicidam pela namorada, sobre os que se tornam melancólicos por muita acumulação de sêmen nos testículos, Burton resolver abordar a melancolia produzida por outro tipo de amor. A saber, o amor a Deus. Sim, a religião é necessária, mas cabe apontar, diz o autor, “as diversas fúrias” provocadas por “pitonisas, sibilas, entusiastas, pseudoprofetas, heréticos e cismáticos”. Nada no mundo causa mais mortes, horrores e misérias. “Hei de apresentar”, afirma Burton, “um oceano estupendo, vasto, infinito de loucura e sandice inacreditáveis”.

No último volume da tradução, há um índice biobibliográfico, com os nomes dos autores e obras citados, para que o leitor interessado em determinada obra citada possa se situar melhor

 

 

Em seu prefácio satírico, Burton diz que escreve sobre a melancolia pois assim mantém-se ocupado, evitando a melancolia.

Ainda que apresentado como um tratado médico, esta anatomia é um documento sui generis, literário e filosófico, viés pelo qual o autor investiga todas as emoções humanas. A Anatomia da melancolia é um documento histórico épico, um tratado, uma peça literária.

É interessante a comparação filosófica que sugere o professor Caetano Galindo com a filosofia de Montaigne: Superlativos mal podem dar conta da pretensão, do escopo e da capacidade de erudito e de prosador inventivo e encantador de Burton que, ao longo de cerca de 1,4 mil páginas, dedica toda sua capacidade analítica para esmiuçar, ilustrar, glosar, co­­mentar e expor todas as facetas do temperamento melancólico, de suas origens a seus frutos.

“Mas se Burton demonstra claramente suas dívidas para com Montaigne na tentativa de escrever um livro sobre o mundo todo a partir da contemplação de sua própria mente, e também no estilo tergiversante, colorido e abarrocadamente espiralado que muda de assunto e abre novas estradas com o sem-cerimônia de quem abre meros parênteses, é na escolha inicial de seu tema, que seus caminhos mais divergem.

“Montaigne era o homem que se dizia incapaz de viver sem alegria, sem leveza. Burton era o melancólico, em um tempo em que essa descrição cobria muito do que hoje chamamos de depressão. Um tempo, também, em que essa melancolia, além de estado de espírito, era moda, estilo, forma de intelectualização, de que Hamlet, aliás, era o melhor exemplo.

“E é a sobreposição dessas duas características que rende ao livro-mamute de Burton seu tom e seu impacto mais característicos”.

 

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