“Perguntei-lhe se por acaso você não tinha se aproximado de grupetos políticos perigosos. Sempre morro de medo de que você possa acabar entre os Tupamaros. Ele disse não saber com que você andava nesses últimos tempos. Disse ser bem possível que você tivesse medo de alguma coisa. Não foi claro”.
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Caro Michele é um forte romance epistolar, da escritora italiana Natalia Ginzburg. Publicado em 1973, o livro foi o primeiro escrito na Itália a contar a história de um jovem terrorista.
A Michele, personagem ausente, criado de maneira paulatina e perspectivada, quem escreve é principalmente sua mãe, Adriana, mas também uma de suas irmãs, além de uma moça com quem ele tivera um caso e possivelmente também um filho e um amigo, Osvaldo, provável ex amante. As cartas escritas por Michele aparecem no romance raramente, o personagem delineia-se como um negativo, através das cartas a ele escritas.
O livro assim desenvolve-se através das cartas, de alguns poucos diálogos e trechos narrativos. Seus personagens, densos, são envoltos em percursos erráticos e melancólicos, vivem vidas em ruínas. A maneira um tanto fragmentária do desenrolar da história através das cartas e diálogos cria um panorama muito coerente dessas vidas decadentes e por isso um tanto angustiadas. A cena inicial da mãe escrevendo ao filho, ausente, já o anuncia.
As cartas da mãe são mais freqüentes e mais informativas, tentam manter um contato que tende a escapar-lhe. Também é a personagem que mais escreve porque sente-se sozinha, após um casamento e um amor falidos, bem como por haver acabado de mudar-se para uma casa no campo. Todavia, as cartas mais significativas ao enredo são as da irmã, Angelica, confidente de Michele. Naquilo que ela escreve vê-se a fragilidade da narrativa humana em busca de verdades para o destino.
Como comum a Ginzburg, a prosa em Caro Michele é precisa, enxuta, exata, o que confere um peso especial a cada palavra, um ritmo próprio muito particular e significativo. Trata-se de um romance intenso, com uma interessante narrativa oblíqua, que ilumina de maneiras diversas os mesmos fatos, mudando o foco e o ponto de vista.
A tonalidade do livro varia sobre o constante fantasma do fascismo e da violência, repressão e opressão políticas. As cartas são enviadas ao jovem Michele, no início dos anos 1970, em Roma, quando há um repique fascista na Itália.
Natalia Ginzburg é uma observadora atenta da sociedade e da resposta humana a seu tempo. As personagens mais jovens tem certa imaturidade, que contrapõe-se à maturidade das personagens mais velhas. Há, nessa contraposição, um comentário muito profundo sobre uma geração deveria ser madura, generosa, pois imersa num momento histórico tão difícil, por outro lado também traça uma observação pungente sobre o embate entre gerações.
Patricia Peterle, da UFSC, em resenha a Caro Michele publicada na revista Estudo Feministas, comenta sobre o quanto Natalia Ginzburg foi uma figura profundamente marcante n o cenário intelectual italiano, “com seu trabalho editorial a produção intelectual e literária da segunda metade do século XX. Os seus primeiros escritos saem, na década de 1930, na famosa revista Solaria, para a qual colaboraram tantos escritores. Um percurso de vida marcado pelo antifascismo, posicionamento político que já via no pai, Giuseppe Levi, e que depois irá compartilhar com o primeiro marido, Leone Ginzburg, que, preso pelo regime fascista, morre, como tantos outros, no cárcere de Regina Coeli, em 1944. Uma geração marcada, como tantas outras na Europa e na América Latina, pelo signo da censura e de um estado de exceção, mas que na verdade era a regra geral, para lembrar as palavras de Walter Benjamin. A narrativa de Natalia Ginzburg, apesar da sua singularidade, acompanha os movimentos tortuosos das manifestações artísticas do entreguerras e do crucial período posterior à década de 1940. Memórias, ensaios, uma prosa ou um texto teatral revigorantes, uma escritura nítida preocupada com as ações e os gestos cotidianos. Num panorama pelos seus escritos, passa-se de um neorrealismo inicial, presente nos primeiros romances, para uma narração mais vigorosa que aos poucos vai sendo aprendida e construída, fruto das experiências de mundo e daquelas vivenciadas em primeiro plano. Preocupações íntimas, mas também relacionadas à essência do ser humano, perfiladas pelo toque e pela sensibilidade do seu olhar e testemunho”. Sobre o romance, Peterle diz ser composto por: “Indivíduos que fazem parte de uma sociedade marcada pelo sofrimento, pela errância, pela fragmentação, pela violência externa que corresponde a uma outra interna. Personagens cujo devir é incerto. […] Desaventuras e vidas esfaceladas, cuja memória faz-se como uma forma de sobrevivência do tempo presente, são perfiladas pelo realismo singular de Natalia Ginzburg, que enfatiza a incapacidade do viver junto. Percepções e sofrimentos individuais e fragmentados que se revelam, aos poucos”. Segundo o comentário de Peterle, na “produção literária de Natalia Ginzburg, a memória e as lembranças são dois aspectos centrais da sua poética”; é nesse sentido que ele sustenta tratar-se de um romance “da memória no qual a lembrança do passado pode ser concebida como um espelho da solidão, do deixar-se viver, como no caso de Michele e de outros personagens, do vazio existencial da pequena e média burguesia, visto pelo olhar sensível da autora. Esse vazio concretiza-se em um dos raros diálogos, um dos últimos em que aparece a voz de Adriana, a mãe de Michele: ‘A gente se acostuma com tudo quando não resta mais nada’”.
A edição brasileira, publicada pela Cosacnaify, foi traduzida por Homero Freitas de Andrade e conta com posfácio de Vilma Arêas.
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“Quando à saudade vem misturar-se a repulsa, o que então acontece é que vemos situados a uma grande distância os lugares e as pessoas que amamos, e os caminhos para chegar até eles parecem-nos interrompidos e impraticáveis”
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Autor: Natalia Ginzburg
Editora: Cosacnaify
Preço: R$ 40,60 (192 págs.)