história

Entre o certo e o certo

1 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“O fanatismo é mais antigo que as religiões, os estados, os sistemas políticos e os governos” – Amós Oz

Odilon Redon

Odilon Redon

Como curar um fanático – Israel e Palestina: entre o certo e o certo, reúne ensaios nos quais o escritor Amós Oz questiona e perspectiva as raízes e as consequências do fanatismo. Para ele, os violentos conflitos que multiplicam-se atualmente não são resultado de uma luta entre civilizações, ou luta social; nossa época, diz, padece de uma síndrome, uma luta entre fanáticos, incluindo todos os tipos de fanatismo, e o “resto de nós”: “Entre os que creem que os seus fins justificam os meios, todos os meios, e o resto de nós que julga que a vida é um fim em si mesmo”.

O livro é composto por uma entrevista com o autor e quatro ensaios: “Em louvor às penínsulas”, “Entre o certo e o certo”, “Como curar um fanático” e “Pós-escrito aos Acordos de Genebra”. O primeiro texto foi escrito em resposta aos atentados do Estado Islâmico em Paris, em novembro de 2015; nele, ao encaminhar sua reflexão, o autor diz:

“Tenho mantido uma discussão amarga com um compatriota muito famoso e meu correligionário judeu, Jesus Cristo, que diz: ‘Perdoa-lhes: não sabem o que fazem’. Às vezes concordo com a primeira parte da sentença, a parte do perdão, mas rejeito energicamente a segunda parte, que implica que devamos ser todos, ou a maioria de nós, perdoados porque somos moralmente imbecis. Não somos. Sabemos o que significa a dor. Sabemos que é errado infligir dor. Toda e cada vez que infligimos dor aos outros, sabemos o que estamos fazendo. […] Qual é, então, a parte difícil do exercício moral? É distinguir entre as gradações do mal. Pois no mundo há muitas gradações do mal. Roubo, pilhagem e exploração são coisas muito ruins. Estupro e assassinato são piores. A opressão de mulheres, de minorias e a colonização de povos são muitos ruins. Genocídio é pior. A destruição do meio ambiente é muito ruim. Limpeza étnica é pior. A comercialização e a vulgarização das relações humanas são muito ruins. A queima de heréticos na fogueira e a venda de jovens mulheres por um maço de cigarros são piores. A infantilização sistemática da humanidade pelo capitalismo de mercado é muito ruim. Bem como o entrelaçamento entre política e entretenimento. Mas as cruzadas, a jihad, a Inquisição, os gulags e os campos de concentração são muito, muito piores”. Para Oz, este é um ponto crucial a ser questionado e, nos “anos recentes, os intelectuais europeus têm sido preguiçosos demais para distinguir as gradações do mal”.

Amós Oz vivencia desde sua tenra infância a divisão de Jerusalém pela guerra, testemunhando em primeira mão as consequências perniciosas do fanatismo. Nos ensaios “Entre o certo e o certo” e “Como curar um fanático”, concisos e poderosos, ele reflete sobre a natureza do extremismo e propõe uma aproximação respeitosa e ponderada para solucionar o conflito entre Israel e Palestina. Ao final do livro há uma contextualização ampla envolvendo a retirada de Israel da Faixa de Gaza, a morte de Yasser Arafat e a Guerra do Iraque. A clareza de seus ensaios, aliada ao senso de humor único do autor para iluminar questões graves, confere novo fôlego a esse antigo debate. Para ele, o conflito entre Israel e Palestina não é entre religiões, culturas ou tradições, mas, acima de tudo, uma disputa por território – e ela não será resolvida com compreensão, somente com um compromisso.

Não se trata, argumenta Oz, de uma luta maniqueísta entre certo e errado, mas de uma tragédia no sentido mais antigo e preciso do termo: uma batalha entre o certo e o certo.

Estes dois ensaios que versam sobre a disputa entre Israel e Palestina já haviam sido publicados no Brasil no volume Contra o fanatismo [Ediouro, 2004], há tempos esgotado nas livrarias. Sua reimpressão junto com os novos textos que compõem este livro é mais do que oportuna, sobretudo frente aos acontecimentos recentes e as discussões deles decorrentes, sobre atentados e seus motivos fanático-religiosos. A inspiração e o fôlego à discussão que as reflexões de Oz suscitam são importantes, inclusive, para combater a comum resposta extremista que se dá ao extremismo.

 

A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.

 

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Senhoras e senhores, permitam-me começar com uma nota pessoal. Durante muitos anos tenho acordado às quatro horas da manhã. Uma caminhada antes do amanhecer põe muitas coisas em sua proporção correta. Por exemplo, se nas notícias da noite de véspera um político usou palavras do tipo “para todo o sempre”, “por toda a eternidade”, ou “jamais, em 1 milhão de anos”, posso ouvir às quatro da manhã as pedras no deserto, ou as estrelas sobre o parque da cidade rindo silenciosamente da percepção que aquele político tem do tempo.

Volto para casa, ainda antes do nascer do sol, preparo uma xícara de café, sento à minha escrivaninha e começo a me fazer perguntas. Não pergunto a que ponto está chegando o mundo, ou qual será o caminho certo a seguir. Eu me pergunto: “E se eu fosse ele? E se eu fosse ela? O que sentiria, desejaria, temeria e esperaria? Do que teria vergonha, esperando que ninguém jamais soubesse?”.

Meu trabalho consiste em me pôr no lugar de outras pessoas. Ou mesmo estar em suas peles. A força que me impele é a curiosidade. Eu fui uma criança curiosa. Quase toda criança é curiosa. Mas pouca gente continua a ser curiosa em sua idade adulta e em sua velhice.

Agora, todos sabemos que a curiosidade é condição necessária, até mesmo a primeira das condições, para todo trabalho intelectual ou científico. Mas quero acrescentar que em minha opinião a curiosidade também é uma virtude moral. Uma pessoa interessada é uma pessoa um pouco melhor, um progenitor melhor, um parceiro, vizinho e colega melhor do que uma pessoa não curiosa. Um amante melhor também.

Permitam-me sugerir que a curiosidade, juntamente com o humor, são dois antídotos de primeira linha ao fanatismo. Fanáticos não têm senso de humor, e raramente são curiosos. Porque o humor corrói as bases do fanatismo, e a curiosidade agride o fanatismo ao trazer à baila o risco da aventura, questionando, e às vezes até descobrindo que suas próprias respostas estão erradas.

Isso me leva ao papel preponderante da literatura, em particular, e da arte, em geral. Seu maior mérito não é propor uma reforma social ou fazer uma crítica política. Como se sabe, o quintal da filosofia e da teologia está entulhado de esqueletos de romancistas e poetas que quiseram competir com filósofos e teólogos, com ideólogos, ou mesmo com profetas. Muito poucos entre eles tiveram êxito, mas isso não está em questão. Uma literatura ruim pode incluir mensagens morais muito importantes e positivas, e continuar a ser literatura ruim.

A característica que define a boa literatura, ou arte, é a capacidade de fazer se abrir um terceiro olho em nossa testa.

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oz

 

 

COMO CURAR UM FANÁTICO

Autor: Amós Oz
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 20,93 (104 págs.)

 

 

 

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