“O direito de greve é um direito burguês. A greve só atinge a legalidade em certas condições, e essas condições são as mesmas que permitem a reprodução do capital”.
A tese inusual é a que defende o jurista e filósofo francês Bernard Edelman, nesta polêmica e original obra, A legalização da classe operária. Segundo Edelman, a legalização da classe operária é um dispositivo de domesticação da luta de classes.
Serão conquistas ou captura política da classe trabalhadora a regulamentação da jornada de trabalho, férias remuneradas, reforma da dispensa, direito de greve, reconhecimento da organização sindical?
Segundo o autor: “Devemos nos livrar de uma vez por todas da ilusão tenaz de um ‘direito operário’ que manteria distância do direito burguês, que seria um tubo de ensaio em que se elaboraria um ‘novo direito’. Tradicionalmente, os especialistas têm empregado seus esforços nesse sentido. É necessário, dizem esses especialistas, autonomizar o direito do trabalho, dar-lhe seus títulos, reconhecer sua especificidade. Ele é, continuam eles, um direito coletivo, um direito de massa, para as massas, que não tem mais nada – ou cada vez menos – a ver com o direito ‘comum’, leia-se, o direito civil. Desse esforço nasceu o ‘socialismo dos juristas’, que se perpetua até hoje sob as espécies sutis e técnicas das relações entre direitos: direito do trabalho/direito civil, direito do trabalho/direito comercial, direito do trabalho/direito público… Como se o trabalho estivesse ‘do lado’ do capital e do Estado! Como se o ‘direito operário’ não fosse o direito burguês para o operário! E como se, enfim, milagrosamente, o direito do trabalho fosse uma zona juridicamente ‘protegida’! Não existe o ‘direito do trabalho’; existe um direito burguês que se ajusta ao trabalho, ponto final”.
A greve é exemplo primordial dessa contenção: “a greve é operária, o direito de greve é burguês”. No início, mostra o autor, toda greve era um delito; quando passou a ser um direito, não contou, porém, com a generosidade da classe dominante, para quem o plano jurídico aparece como elemento fundamental. Sob nada mais do que uma máscara de amparo legal, diz Edelman, há na ideologia jurídica uma tentativa de manipular a dimensão de expressão e luta das massas. Há um papel ideológico desempenhado pelo direito moderno que dedica-se ao esfacelamento de consciência de classe e à despolitização da luta trabalhista. Além disso, a a ideologia jurídica ainda dá profundidade filosófica e política ao problema da representação. Pois, provoca o autor: “Onde ‘existe’ a classe operária, senão no sistema sindical que a ‘representa’ profissionalmente, senão no sistema de partidos, que a ‘representa’ politicamente? Onde ela fala, senão pela voz de seus representantes ‘autorizados’, nas instâncias autorizadas, num espaço autorizado?”.
De acordo com Marcus Orione, Jorge Luiz Souto Maior, Flávio Roberto Batista e Pablo Biondi, todos tradutores de Edelman, no artigo “A atualidade da ‘legalização da classe operária’”, a “crítica marxista do direito propriamente dita é posterior […] a Marx e Engels, ainda que este último tenha se aproximado muito dela ao estudar a ideologia jurídica. Foi somente a partir do início do século XX que o fenômeno jurídico começou a receber uma atenção maior por parte da análise marxista, e isto se deve ao evento mais importante do período, e quiçá de todo o século: a revolução russa”. Os autores prosseguem a contextualização histórica, apontando que a “nova relação social específica, que diverge de troca de mercadorias em uma sociedade com escravos (antiguidade) ou com servos (idade média), promove uma nova dimensão do valor de troca das mercadorias em geral, com o dado específico de que a mercadoria força de trabalho aparece – apenas aparece, atenção para esse termo – como se fosse realizada por sujeitos proprietários que são tratados como livres e iguais”. Assim, “ao se conceber a figura do sujeito de direito como homem livre, igual e proprietário, para a circulação da principal mercadoria que deve ser expropriada pelo capital, a força de trabalho, há a consolidação concomitante de uma ideologia jurídica – a que qualquer indivíduo se encontra submetido, e que corresponde a categorias estudadas por Althusser, como a de que o sujeito é interpelado pela ideologia, no sentido de que não tem condições, individualmente, de a ela resistir, nela já se inserindo desde o instante em que passa a existir como ser vivente”. Eis a contemporaneidade da obra de Edelman, publicada originalmente na década de 1970; dizem os tradutores especialistas: “Em A legalização da classe operária, Edelman apresenta uma crítica do direito do trabalho, em especial do direito coletivo do trabalho. E por meio dessa crítica, ele demonstra como a forma jurídica incide sobre a luta de classes, inclusive nos momentos em que esse conflito aparece mais claramente, como nas greves operárias. A grandeza dessa obra reside, assim, não apenas no rigor metodológico e na extensão do campo de análise, mas também no fato de ela conjugar dois elementos muito caros ao marxismo: as formas sociais do capitalismo (no caso, o direito) e a luta de classes, esta contradição fundamental que tem colocado a história em movimento até dos dias de hoje. O conteúdo da obra consiste num desvelamento profundo das ilusões da doutrina jurídica acerca do direito do trabalho e de seu papel na sociedade”.
Sintetizando a análise de Edelman, os comentadores apontam: “Enquanto uma forma, o direito envolve o seu conteúdo e o submete às constrições necessárias para moldá-lo em favor da reprodução da sociabilidade do capital – de tal sorte que as posições jurídicas conquistadas pela classe operária não traduzem o seu poder de classe propriamente, mas antes o poder da ordem social que se organiza juridicamente. Isto porque a relação entre capital e trabalho é uma relação jurídica entre sujeitos, é um antagonismo social expresso num liame entre contratantes. Todos os avanços do movimento operário que foram contemplados legalmente são concretizados a partir das categorias jurídicas que instruem a sociedade burguesa e o direito como uma de suas formas sociais. Logo, não é possível imaginar que a classe operária possa se amparar no direito para questionar o modo de produção capitalista. Tampouco é possível que ela construa no interior da forma jurídica qualquer estratégia de poder, pois o poder, nessa sociedade, só pode ser aquele que corresponde à sua estruturação capitalista. Para o direito do trabalho, as consequências desse raciocínio são tremendas. Visto como uma espécie de direito de resistência pelos juristas progressistas, ou mesmo como o embrião para um novo direito, como uma possibilidade de renovação geral da ordem jurídica e do seu liberalismo tradicional, o direito do trabalho se revela, graças à inquirição implacável de Edelman, como mais um espaço de consagração do domínio burguês”.
A legalização da classe operária foi publicado pela Boitempo, com tradução de Marcus Orione
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“A maior de todas as ilusões é acreditar que a classe operária ‘existe’. A classe operária, politicamente, jamais ‘existiu’. Pessoalmente, ela irrompeu na história algumas vezes – a Comuna de Paris, Outubro de 1917 ou Maio de 1968, para nossa memória ocidental –; ela se manifesta, ocasionalmente, nos interstícios das práticas, dos aparelhos, dos discursos. Mas ela jamais existiu, senão como categoria metajurídica que desempenhou e desempenha o mesmo papel que a ‘nação’ ou o ‘povo’. A classe operária existe apenas no espaço político burguês. Ela foi ‘legalizada’, enquadrada, contida. Tomemos, como exemplo, a empresa. A classe operária teve de aceitar que a greve se transformasse em direito de greve, ou seja, em uma prática legal que ela não pode exceder, sob pena de ficar fora da lei; ela teve de aceitar a ideologia política da empresa; teve de aceitar que suas organizações de classe – os sindicatos – participassem desse aprisionamento. A classe operária foi legalizada na empresa, no Estado, nos partidos políticos. Nós a obrigamos a falar uma língua que não é a sua, é a língua do direito”.
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A LEGALIZAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA
Autor: Bernard Edelman
Editora: Boitempo
Preço: R$ 34,30 (192 págs.)