Guia de Leitura

OuLiPo

1 abril, 2016 | Por Isabela Gaglianone

Marcel Bénabou e Jacques Roubaud, no artigo “Qu´est-ce que l´OuLiPo?” [O que é o OuLiPo?], explicam-no como “a literatura em quantidade ilimitada, potencialmente produzível até o fim dos tempos, em grande quantidade, infinitas para todos os usos”. Sobre o autor que se dedica a esta prática, dizem que é “um rato que constrói si mesmo um labirinto do qual se propõe a sair”.

O OuLiPo é um grupo de escritores, fundado na França, em 1960. Seu nome é o acrônimo de “Ouvroir de littérature potentielle”, ateliê de literatura potencial. Não se trata de um movimento literário. Tampouco trata-se de um seminário científico. Também não se trata de literatura aleatória.

O que caracteriza a literatura potencial é o estabelecimento de regras formais. Anagramas, palíndromos, restrições literárias baseadas em formas fixas, como haicais, sextinas, rondós. O grupo nasceu da obsessão, de Raymond Queneau e François Le Lionnais, por aplicar, à literatura, princípios matemáticos.

Em 1969, Georges Perec, dois anos após entrar para o grupo, publicou o primeiro romance da literatura potencial, O sumiço, que acaba de ter tradução publicada no Brasil. Selecionamos, impulsionados por esta grande realização editorial, mais alguns livros de escritores da OuLiPo.

Jacques Roubaud, “Algo: preto”

 

Os poemas reunidos em Algo: Preto, de Jacques Roubaud formam a mais importante obra poética de um dos mais notáveis autores da produção literária contemporânea.

Poeta e matemático, Roubaud trata ao longo destes versos do vácuo, da solidão, da perda daquele que sofre, na vida, a morte. Sua escrita incorpora de forma embrionária a complexidade da experiência da modernidade, ou da pós-modernidade: o mundo contemporâneo vem progressivamente abolindo o padrão das medidas, do comedimento ou da moderação ao tempo, e, ciente disso, Roubaud busca o poético justamente nesse abismo de indeterminação do moderno. Ele assim leva sua escrita às fronteiras da poesia com: a matemática, a narrativa aventuresca, o ensaio, o romance policial, a novela, a fotonovela, o jogo, o passeio, o labirinto, o teatro, a autobiografia, os quadrinhos.

Com Quelque chose noir, publicado originalmente em 1986, Roubaud atingiu seu ápice poético, até agora. Por suas admiráveis capacidades crítica e inventiva, e pela intensidade com que enfrenta a experiência da morte.

Como bem pontua a crítica Marceli Andresa Becker, no interessante artigo “Da certeza da morte: uma conversa entre Jacques Roubaud e Wittgenstein”, publicado na revista Zunái, “o escritor apresenta o seu melhor ao tentar ‘dizer’ a morte prematura da mulher. Na contramão do que poderíamos imaginar, os poemas de Roubaud não funcionam como uma válvula de escape para o sentimentalismo. Dotados de rigor conceitual, resultam do esforço do poeta em encontrar as palavras certas para expressar o que significa viver uma experiência (a morte da pessoa amada) para a qual não cabem palavras. Seu empreendimento é todo às avessas: ocupar um espaço (o poema na folha em branco) para relatar o vazio (o lugar que alguém deixou); invocar a força do verbo para dizer, em algum sentido, o silêncio; reivindicar da ausência, enfim, um modo de aparecer”

Trata-se de uma convivência poética com o extremo — também o terminal ou o que está a ponto de se extinguir —, transformando a densidade do que é derradeiro em novo começo. Esse algo preto não poderia representar melhor uma escrita poética que equilibra-se sobre os entrecruzamentos de tantas camadas de delgadas fronteiras.

No Brasil, o livro foi publicado pela editora Perspectiva, em 2005, traduzido por Inês Oseki-Dépré.

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Em mim reinava a desolação

Onde tua existência era tão forte. tornara-se forma de ser.

Em mim reinava a desolação. como falando em voz baixa.

Mas as palavras não tinham a força de atravessar.

De atravessar apenas. pois não havia o quê.

Volta-se para o mundo. volta-se para si.

Não se queria habitar de modo algum.

É o núcleo habitual do infortúnio.

“Você” era nossa maneira de tratamento. fôra.

Morta eu não podia mais dizer senão : “tu”.

 

 

Georges Perec, “A vida modo de usar”

A vida modo de usar, de Georges Perec, foi publicado originalmente em Paris em 1978 – quatro anos antes da morte prematura do autor, aos 46 anos – e atualmente é considerado um dos grandes romances da segunda metade do século XX. Trata-se, na realidade, de uma teia de romances – no plural, como enfatizava Perec -, uma miríade de histórias e ‘sub-histórias’, a princípio aparentemente banais, envolvendo os habitantes de um edifício em Paris, e que se entrecruzam como as peças de um quebra-cabeça.

Sobre esta obra, Italo Calvino escreve: “Exemplo daquilo que chamo de hiper-romance é A vida modo de usar, romance extremamente longo, mas construído com muitas histórias que se cruzam (não é por nada que no subtítulo traz romances no plural), renovando o prazer dos grandes ciclos à la Balzac. Creio que este livro […] talvez seja o último verdadeiro acontecimento na história do romance. E isso por vários motivos: o incomensurável do projeto nada obstante realizado; a novidade do estilo literário; o compêndio de uma tradição narrativa e a suma enciclopédica de saberes que dão forma a uma imagem do mundo; o sentido do hoje que é igualmente feito com acumulações do passado e com a vertigem do vácuo; a contínua simultaneidade de ironia e angústia; em suma, a maneira pela qual a busca de um projeto estrutural e o imponderável da poesia se tornam uma só coisa”.

De acordo com o crítico Gustavo Silveira Ribeiro, no artigo “Os fracassos necessários: Georges Perec e as taxonomias impossíveis de ‘A vida modo de usar’”, publicado na Caligrama – Revista de Estudos Românicos, através dos episódios e personagens da obra e da leitura de todos os seus paratextos, pode-se notar “como a utilização criativa que Perec faz de modelos taxonômicos como listas, catálogos, verbetes e índices se realiza de modo irônico. As exaustivas enumerações presentes em A vida modo de usar explicitam a insuficiência de qualquer sistema de classificação humano, uma vez que, ao invés de ordenar o romance, as listas apenas acentuam seu caráter caótico e inextricável”.

A Companhia das Letras publicou no Brasil a edição de bolso da tradução de Ivo Barroso em 2009. A editora disponibiliza um trecho para visualização.

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Certo, a história poderia começar assim, aqui, desta forma, de maneira um tanto lerda e lenta, neste reduto neutro que é de todos e não é de ninguém, onde as pessoas se cruzam quase sem se ver, onde a vida do prédio repercute, distante e regular. Do que se passa por trás das pesadas portas dos apartamentos só se percebem no mais das vezes os ecos perdidos, os fragmentos, os esboços, os contornos, os incidentes ou acidentes que se desenrolam nas chamadas “partes comuns”, esses leves ruídos de feltro que os gastos tapetes de lã vermelha abafam, esses embriões de vida comunitária que vão sempre se deter nos patamares. Os habitantes de um mesmo prédio vivem a apenas alguns centímetros uns dos outros, uma simples divisória os separa, partilham os mesmos espaços que se repetem ao longo dos andares; fazem os mesmos gestos ao mesmo tempo, abrir a torneira, dar a descarga, acender a luz, pôr a mesa, algumas dezenas de existências simultâneas que se repetem de andar em andar, de prédio em prédio e de rua em rua.

 

Raymond Queneau, “Zazie no metrô”

Zazie no metrô, de Raymond Queneau, foi publicado originalmente em 1959. O romance narra as andanças da desbocada e desobediente Zazie por Paris. Vinda do interior, a menina chega à capital para passar alguns dias, sob os cuidados do tio Gabriel, munida de duas obsessões – andar de metrô e usar uma calça jeans pela primeira vez. Porém, uma greve dos transportes coletivos impede a menina de fazer seu passeio subterrâneo e, para ganhar a sonhada calça jeans, ela se vê às voltas com um sujeito que não se sabe se é um tarado ou um policial. O desejo de descer aos subterrâneos do metrô dão a tônica deste romance labiríntico.

Conforme analisa Cássio Starling Carlos, crítico do jornal Folha de São Paulo, em resenha do livro: “Queneau trafegou em círculos vanguardistas desde os anos 20, quando passou a frequentar o grupo surrealista, do qual assimilou o espírito de ruptura criativa e de provocação em sua obra. No fim dos anos 40, seus ‘Exercícios de Estilo’, nos quais reinventava um pequeno relato uma centena de vezes e demonstrava que em sua concepção a produção literária era sinônimo de testar limites, fizeram repercutir sua assinatura. No fim da década seguinte, Zazie no Metrô tornou-se um enorme sucesso de vendas e desmentiu as teses de resistência do leitor comum a romances de invenção de linguagem. Entre os antepassados mais evidentes deste romance estão o Ulisses de James Joyce e os dois Alice de Lewis Carroll. Do primeiro, Queneau absorveu a inventividade linguística, promovendo uma ruptura de hierarquia entre texto e fala por meio da absorção, na escrita, de sonoridades da linguagem oral”. É o que faz, diz o crítico com que se proliferem ao longo do romance “palavras-sons tais como ‘djins’, ‘rambrãs, ‘Sãgermãdeprê, que se seguem ao Doukipundonktan que abre o relato (deliciosamente convertido num dondekevemtantofedô na tradução de Paulo Werneck). Em Carroll, o escritor francês foi buscar a epopeia infantil por mundos em que a lógica é posta em suspenso, em que uma criança vagueia sem o controle de adultos e lá encontra uma sucessão de tipos extravagantes e fora da ordem. Sem esquecer que foi também um usuário compulsivo de palavras-valise, as duplicações (ou triplicações) de sentido que Queneau também promove em expressões como ‘hormossecsual’ ou ‘rapturista’. Porém, é mais nos deslocamentos que nas fusões (ou nas confusões) que o escritor produziu novidade. Se há um típico desrespeito às normas da linguagem na escrita, há ainda mais uma desconcertante presença de tipos humanos ‘inadequados’ em torno da criança Zazie: travestis, pedófilos, ninfomaníacas”.

No Brasil, Zazie no metrô foi publicado em 2009 pela Cosac Naify, com posfácio de Roland Barthes e ótima tradução de Paulo Werneck, simultaneamente rigorosa e descontraída, como o original.

Outro livro de Queneau traduzido e publicado no Brasil é o Exercícios de estilo [Imago, 1995, esgotado], que conta de noventa e nove modos diferentes um acontecimento banal: um homem encontra um estranho duas vezes no mesmo dia.

 

 

Italo Calvino, “Se um viajante numa noite de inverno”

Escritor italiano membro do OuLiPo, Italo Calvino é autor de vasta obra de literatura experimental. Exemplo notável é o romance Se um viajante numa noite de inverno, estruturado a partir da disposição de cartas de tarô numa mesa.

No centro de sua preocupação está um tema que os teóricos chamam de “crise da representação”. Crise que levaria à ausência de espaço, no mundo capitalista contemporâneo – dividido, múltiplo, alienado -, para os romances tradicionais, com princípio, meio e fim, que constroem personagens e organizam o mundo, instituindo sentido às coisas. O leitor de hoje estaria condenado ou à leitura espinhosa de obras que se desdobram sobre si mesmas e procuram responder às própria questões a literatura, ou à leitura superficial e descartável das obras de simples entretenimento. Calvino dialoga com o leitor e faz dele seu personagem principal: o Leitor, cuja grande missão é ler romances. Ao Leitor – nós, todos os leitores, portanto – que por dez vezes principia(mos) a leitura de histórias de diferentes autorias, Calvino incute a paixão do começo e rouba-lhe(nos) a progressão, introduzindo sucessivamente novas narrativas, apresentadas das mais insólitas maneiras.

Segundo o crítico Rinaldo Gama, em artigo escrito para a Folha de São Paulo, trata-se de um “hiper-romance”. Calvino anuncia já na primeira linha do romance: “Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, ‘Se um Viajante numa Noite de Inverno‘”. A frase, diz Gama, “como ocorre com toda grande obra, contém o livro inteiro. O que se lerá dali por diante será isso: inícios de romances. Borgianamente, Calvino […] afirmava que ‘todo livro nasce na presença de outros livros’. Por um erro da editora, o exemplar de ‘Se um Viajante numa Noite de Inverno’ do personagem Leitor tem um defeito a partir da página 32, o que o leva a se dirigir à livraria para tentar trocá-lo. Lá ele recebe um novo volume e descobre que a história nada tem a ver com aquela cuja leitura havia iniciado. No final, o Leitor, e o leitor de verdade também, terá começado dez romances –com referências a Plotino, de um colecionador de caleidoscópios–que, por motivos alheios a sua vontade, não conseguirá terminar de ler. Num século marcado pela metalinguagem nas artes, o metalinguístico ‘Se um Viajante numa Noite de Inverno’ consegue o prodígio de se destacar por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque confunde o leitor real com o personagem Leitor, sem que, por exemplo, o volume que está nas mãos do primeiro apresente o tal defeito na página 32 (embora ele esteja, efetivamente, nela). O outro motivo: apesar da afiada ironia e do irresistível humor com que Calvino desfila tipos de romances, possibilidades de crítica e leitura, para não falar do deboche que reserva a certas atitudes dos círculos acadêmicos e editorais, é evidente que ‘Se um Viajante numa Noite de Inverno’ revela o seu gosto pela reflexão literária. No fundo, ele funciona como um ensaio prático”.

Publicado originalmente em 1979, no Brasil o livro foi lançado em 1999, pela Companhia das Letras, com tradução de Nilson Moulin. A edição venceu o Prêmio Jabuti na categoria de Melhor Produção Editorial de Obra em Coleção.

 

 

Em artigo, os brasileiros Jacques Fux e Darlan Roberto dos Santos, dizem que, segundo “Jacques Derrida: ‘um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo. Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível. A lei e a regra não se abrigam no inacessível de um segredo, simplesmente elas nunca se entregam, no presente, a nada que se possa nomear rigorosamente na percepção”. Em 1960 o OULIPO – Ouvroir de Littérature Potentielle – levou ao extremo essa proposta de Derrida através da composição de textos baseados em restrições e regras”. Como pontuam os autores, a criação do OULIPO “pode ser vista como resposta à contingência proposta pelo grupo surrealista. Raymond Queneau, antigo participante do Surrealismo, teve uma divergência com André Breton, o que resultou em seu afastamento do grupo. A partir desse momento, e juntamente com François Le Lionnais, propõe a criação de um grupo que trabalhe com literatura a partir de restrições (contraintes) [contraintes são restrições iniciais impostas à escrita de um texto ou livro, sendo as mais básicas de caráter linguístico; existem restrições artificiais, que podem ser de caráter matemático], previamente pensadas. Esse primeiro momento é marcado pela produção de manifestos e pela consolidação teórica da proposta do grupo. Em seguida, com a entrada de Georges Perec, Italo Calvino e Jacques Roubaud, o grupo se popularizou e entrou em segunda e produtiva fase. Perec foi um dos principais difusores do grupo, escrevendo textos e livros com muitas contraintes. Sua paixão pela estrutura, pelos lipogramas, palíndromos, carrés e jogos vinculou seu nome ao OULIPO, e sua obra, à contrainte”.

O fundamento principal do grupo é o questionamento da visão mítica da “inspiração” poética ou literária, que fora herdada dos românticos e utilizada como base pelos surrealistas.

Segundo Raymond Queneau: “Uma outra ideia muitíssimo falsa que mesmo assim circula atualmente é a equivalência que se estabelece entre inspiração, exploração do subconsciente e libertação; entre acaso, automatismo e liberdade. Ora, essa inspiração que consiste em obedecer cegamente a qualquer impulso é na realidade uma escravidão. O clássico que escreve a sua tragédia observando um certo número de regras que conhece é mais livre que o poeta que escreve aquilo que lhe passa pela cabeça e é escravo de outras regras que ignora”.

 

 

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