Guia de Leitura

Os sertões – as raízes continuam vivas

26 setembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

Na primeira metade do século XX foi produzido um conjunto de obras fundamentais, formadoras da ideia de Brasil e do que é ser brasileiro, que até hoje reverberam na atualidade nosso pensamento contemporâneo.

Os sertões, publicado originalmente em 1902, Casa-grande & senzala, cuja primeira edição é de 1933, e Raízes do Brasil, publicado em 1936, permanecem como livros clássicos sobre a formação da sociedade brasileira – como “explicadores” do Brasil.

As edições comemorativas, que as três obras ganharam, nos fazem pensar a respeito de sua atualidade e perguntar qual a dimensão de sua influência e força retórica, a despeito das críticas e dos estereótipos por estas críticas criados. As três obras são retrato de lógicas sociais brasileiras, cujas profundas raízes alimentam frutos até hoje.

 

Euclides da Cunha, “O sertões -Edição crítica comemorativa”

Euclides da Cunha escreveu o clássico Os sertões a partir de um trabalho jornalístico sobre a rebelião de Canudos, liderada por Antonio Conselheiro e duramente reprimida pelo governo. Enviado ao sertão da Bahia pelo jornal O Estado de São Paulo, o autor defrontou-se com a realidade de famílias reunidas em torno de um líder messiânico, cujo movimento – vítima e crítico especialmente da precariedade da região – seria, eminentemente, massacrado. Parte da riqueza do livro reside na percepção da mudança de opinião do escritor que, a princípio, movido por um espírito patriótico e republicano, via com repulsa a revolta dos “fanáticos” defensores da monarquia – opinião compartilhada pelo restante da elite letrada, que não tolerava a insurgência do grupo, considerando-a uma ameaça ao projeto civilizatório do Brasil cujo ideal positivista de “ordem e progresso” era o lema. A experiência foi, para Euclides da Cunha, transformadora e teve como fruto um romance social que se tornou uma das maiores obras da literatura brasileira. Baseada em teorias deterministas em voga na época, a obra aborda cientificamente a influência do meio sobre o homem, como mostra a própria estrutura dos capítulos: “A terra”, “O homem”, “A luta”.

A recém criada editora Ubu acaba de publicar uma edição crítica: além do texto estabelecido pela edição crítica de Walnice Nogueira Galvão, o volume traz a reprodução de páginas das cadernetas de campo de Euclides da Cunha e um conjunto de imagens de Flávio de Barros, único registro fotográfico conhecido do conflito. Esta edição comemorativa foi publicada por ocasião dos 150 anos de nascimento de Euclides da Cunha e conta com uma extensa fortuna ensaística sobre a obra euclidiana, trazendo textos de Walnice Nogueira Galvão, José Veríssimo, Araripe Junior, Sílvio Romero, Gilberto Freyre, Antonio Candido, Olímpio de Souza Andrade, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Duglas Teixeira Monteiro, Franklin de Oliveira, José Calasans, Antônio Houaiss, Luiz Costa Lima, Roberto Ventura.

Para Antonio Candido: “Muito mais que sociólogo, Euclides da Cunha é quase um iluminado. As simplificações que operou, na síntese das grandes visões de conjunto, permitem-lhe captar a realidade mais profunda do homem brasileiro do sertão. Por isso há nele uma visão por assim dizer trágica dos movimentos sociais e da relação da personalidade com o meio — físico e social. Trágica, no sentido clássico, de visão agônica em que o destino humano aparece dirigido de cima. O homem euclidiano é o homem guiado pelas forças telúricas, engolfado na vertigem das correntes coletivas, garroteado pelas determinações biopsíquicas: — e no entanto, elevando-se para pelejar e compor a vida na confluência destas fatalidades. Semelhante visão não se confunde com o mecanicismo de muitos deterministas do seu tempo, ou anteriores a ele. Em Ratzel, ou em Bukle, não há tragédia: há jogo mútuo quase mecânico entre o homem e o meio. Em Euclides, porém, seu discípulo, podemos falar de sentimento trágico, porque nele as determinantes do comportamento humano, os célebres fatores postos em foco pela ciência, no século XIX, são tomados como as grandes forças sobrenaturais, que movimentam as relações dos homens na tragédia grega. Só o compreenderemos, pois, se o colocarmos além da sociologia — porque de algum modo subverte as relações sociais normalmente discriminadas pela ciência, dando-lhes um vulto e uma qualidade que, sem afogar o realismo da observação, pertencem antes à categoria da visão.

Dificilmente classificável devido à mescla de jornalismo, literatura e estudo sociológico, o livro adianta temas-chave do modernismo e tem como um de seus legados a incorporação do ponto de vista local – nesse caso, do Brasil profundo –, por meio de uma linguagem grandiosa e repleta de contrastes. “O sertanejo é, antes de tudo, um forte” impôs um novo modo de se pensar o brasileiro, e tornou-se referência histórica incontornável para as discussões sobre identidade nacional a partir de então.

A organizadora da edição crítica agora lançada, em artigo publicado pela revista Cult, conta sobre a integração do escritor à última das quatro expedições da campanha de Canudos, que resultaria na série de reportagens que levaria o título de “Diário de uma expedição” e no famoso romance: “O arraial calou-se, sem se render, a 5 de outubro de 1897, após ser incinerado mediante o lançamento de querosene e bombas de dinamite. Os últimos resistentes, tombados numa cova que servia de trincheira no largo das igrejas, não eram mais que quatro, dos quais dois homens, um velho e um menino. Sempre rememorado, esse final inglório tornou-se representativo daquela que foi uma guerra de extermínio contra uma população indefesa. Da experiência, resultaria seu livro mais reputado. Mas antes Euclides dedica-se a acumular uma notável gama de saberes para escrever Os sertões, consagrado ao resgate da memória daqueles que pereceram defendendo Canudos”. De acordo com Walnice Nogueira Galvão, a principal indagação do escritor era: “por que existiria esse tipo de fenômeno num país que acabara de dar dois gigantescos passos na direção do progresso, emancipando os escravos e derrubando a monarquia? Na ânsia de encontrar respostas, Euclides procederia a estudos sobre ‘A terra’, que aparecem na primeira parte, interessado que ficou pela formação geológica da região, detendo-se na flora e na fauna, nos determinantes da seca endêmica naquelas paragens, na aridez de deserto que ali reina. Na segunda parte, ‘O homem’, o autor estuda as correntes de povoamento e as teorias da miscigenação para compreender a genealogia do sertanejo e analisar o conjunto de fatores que deu origem a um líder extraordinário como Antonio Conselheiro. O restante do livro é dedicado à luta, com base no que viu e anotou em suas cadernetas de campo, nas reportagens que fez como correspondente, mas também em materiais como o noticiário de outros jornais, as ordens do dia dos militares, os relatórios de governo”. A organizadora analisa o movimento da consciência nacional que culminou na obra; diz Galvão: “Torturado, emocional, quase sempre grandiloquente, não é de leitura amena e reboa como o discurso de um tribuno. A lição principal que Euclides nos lega no que concerne a uma guerra fratricida e desnecessária é a admiração pelo esforço desenvolvido por populações carentes de tudo para criar novas formas de vida em comum. De um modo ou de outro, engendraram uma estrutura alternativa de poder que as subtraía ao mando de fazendeiros, padres e delegados de polícia – que encarnavam as autoridades máximas no sertão, representando a propriedade, a Igreja e as forças da repressão”.

A editora Ubu disponibiliza um trecho para visualização.

_____________

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. […] Entretanto, toda essa aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida, operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”.

_____________

 

 

Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil – Edição crítica – 80 anos [1936 – 2016]

A edição comemorativa pelos seus oitenta anos de publicação, Raízes do Brasil – Edição crítica, de Sérgio Buarque de Holanda, traz ao conhecimento do leitor todas as mudanças que o texto sofreu ao longo de suas reedições. Sob a cuidadosa organização feita por Pedro Meira Monteiro e Lilia Moritz Schwarcz, o volume traz o texto atual, ou seja, a quinta e última edição aprovada em vida por Sérgio Buarque de Holanda e publicada em 1969, cotejada com as mudanças sofridas em relação às quatro edições que a precederam. Trata-se de um livro também sobre o próprio livro.

Lilia Schwarcz, conforme aponta o artigo de Antonio Gonçalves Filho, publicado pelo jornal O Estado de São Paulo em 03 de agosto de 2016, diz ser bonito na história do livro, o processo de transformações através do qual Sérgio Buarque de Holanda passou ao longo de todas as releituras da obra. Schwarcz comenta a disposição do historiador em discutir mesmo o conceito que é o mais polêmico de seu livro, do “homem cordial”. Nas palavras de Gonçalves Filho: “O poeta Cassiano Ricardo (1895-1974) foi um dos que trombaram com o conceito do historiador, preferindo interpretar a cordialidade como bondade. ‘Buarque de Holanda admite, então, que é também bondade, além de inimizade e hierarquia, o que explica a aversão do brasileiro à impessoalidade do Estado, sempre buscando um padrão afetivo a seguir.’ Em outras palavras, é um homem formado na tradição familiar, submisso às relações de simpatia e avesso a tudo o que é externo ao núcleo de parentes e amigos – a razão do compadrio onipresente na política nacional. ‘A exacerbação do poder pessoal vai virando a personificação do Estado, a política de caráter afetivo que tem de se sobrepor ao que é público, e nisso ele acertou na mosca’, argumenta Lilia Schwarcz”.

“As mudanças que Sérgio Buarque fez não foram nada cosméticas, ele foi realizando uma varredura no livro. É um livro vivo, consideravelmente alterado por três décadas”, disse Schwarcz, conforme citada pelo artigo de Sylvia Colombo, publicado na Folha de São Paulo, também no início de agosto. Sobre a interpretação do poeta Cassiano Ricardo sobre a cordialidade como “técnica da bondade”, relacionada a uma ideia de polidez, Sylvia Colombo pontua que Sérgio Buarque respondeu, em carta incorporada ao livro a partir de sua terceira edição, de 1956, “que a cordialidade tinha tanto a ver com a bondade como com a inimizade e que o homem cordial era o contrário do homem polido, por ser avesso a rituais públicos e por cultivar grande intimidade na atividade política”. A polêmica acerca do conceito prolongou-se por décadas; na edição original, aparece como herança do passado rural e ibérico e como justificativa para a prevalência das relações pessoais e afetivas sobre os modos mais impessoais de regras de funcionamento da sociedade. Isso favorecia a existência dos compadrios e da força do “pistolão”. Por outro lado, conforme o país se urbanizasse, o homem cordial desapareceria.

A publicação desta edição comemorativa foi acompanhada de um debate sobre a importância intelectual e histórica da obra, suscitado sobretudo pelas respostas críticas aos comentários taxativos feitos pelo sociólogo Jessé de Souza, que, em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo, disse: “Sérgio Buarque construiu a interpretação do Brasil mais influente até hoje. Em grande medida, ela advém de Gilberto Freyre (1900-87), como a noção de identidade nacional baseada nos afetos e nos sentimentos supostamente trazida de Portugal. Cientificamente, a validade dessa interpretação é, no entanto, nula. E sua celebração até hoje mostra apenas a miséria de nosso debate acadêmico e, por consequência, de nosso debate público”. Essas e outras árduas declarações de Souza foram comentadas pelo professor Pedro Meira Monteiro e pela historiadora Maria Lucia Garcia Pallares-Burke. Monteiro respondeu a Souza em artigo publicado pela ótima revista Peixe Elétrico, no qual comenta:  “Uma pergunta que atravessa Raízes do Brasil é o papel do Estado. Ele é uma transcendência, como queria Hegel? Ou é um complemento e uma continuação da família, como queria o pensamento conservador? E como conceber a cadeia de representação política num mundo no qual o sujeito político é o amigo, o chapa, o protegido? De que lealdade se fala, quando se fala em política em Raízes do Brasil? Lealdade ao ‘povo’? É possível ainda perceber Raízes do Brasil como um comentário oblíquo do populismo nascente. O líder carismático é o caudilho esclarecido, ou é um dos nossos? A quem é dado sentir a pulsação do corpo social? São perguntas que não encontram resposta. No centro do redemoinho está a crise do liberalismo no período entreguerras”.

Em meio a estas perguntas, não por acaso cronicamente sem resposta, Monteiro sugere outra: “E o que Raízes do Brasil nos diz, hoje? Talvez a sua longevidade tenha a ver com o fato de que, no plano da forma, ele não oferece respostas; ao contrário, mantém-se a partir de ambivalências e paradoxos muito impressionantes”. Para o organizador da edição crítica desta grande obra de Sérgio Buarque de Holanda: “Ao contrário do que sugere Jessé Souza, em hipótese tão brilhante quanto equivocada, em Raízes do Brasil não há uma aposta no poder regenerador do mercado, nem tampouco sua crítica à corrupção se limita ao Estado. O ponto nevrálgico, em Raízes do Brasil, é justamente a permanência da oligarquia na República, ou seja, o fato de que as mazelas da sociedade escravista se perpetuam. […] Um livro atual, portanto, justamente porque a oligarquia é a grande fênix da nossa tragédia coletiva, o monstro que se reergue de novo a cada tropeço. E isso se dava, há oitenta anos, assim como hoje, em meio aos espamos entre democracia e estado de exceção, entre a institucionalidade e uma outra coisa que ainda não sabemos nomear, mas que está aí, na nossa cara”.

 

 

Gilberto Freyre, “Casa grande & senzala”

Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, foi originalmente publicado em 1933 e tornou-se um dos pilares da ideia de formação do Brasil em termos culturais, como observou Darcy Ribeiro. Valorizando o papel do negro na história brasileira, exaltando a miscigenação racial, desmistificando preconceitos e reconhecendo a originalidade de nossa cultura, Gilberto Freyre revolucionou a historiografia brasileira passando a estudar o cotidiano por meio da história oral, documentos pessoais, manuscritos de arquivos públicos e privados, anúncios de jornais, fontes, até então, ignoradas. Usou também seus conhecimentos de antropologia e sociologia para interpretar fatos sob uma luz inovadora.

Com uma linguagem que em muitos aspectos se aproxima da literatura e, por vezes, com um tom irreverente, Gilberto Freyre abalou o meio intelectual dos anos 1930 com este livro ao apresentar, por meio de uma sólida pesquisa em arquivos e bibliotecas do Brasil e do exterior, a miscigenação racial como uma vantagem da sociedade brasileira.

A atual edição – 52ª edição publicada no Brasil –, da editora Global, traz a apresentação escrita pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, além da revisão das notas bibliográficas e dos índices onomástico e remissivo.

Freyre analisa o panorama das relações sociais, econômicas e culturais centrado na relação entre senhor e escravo, como já anuncia desde o título do livro. Às relações de submissão e rudeza, patriarcalista e patrimonialista, espelha relações de familiaridade e sexualidade, reconhecendo sua complementariedade.

Algumas correntes críticas entendem Casa-grande & senzala como “literatura em potência”, inscrevendo a obra tanto nos estudos históricos e sociológicos, como nos estudos literários. Assim compreendida, a obra freyriana, como explicação da formação da sociedade brasileira, busca seu lugar no pensamento social brasileiro e o seu “entre-lugar” na literatura. E, no terreno híbrido entre literatura e sociologia, encontra-se parte da riqueza da obra.

Sobre o caráter literário-sociológico da obra freyreana, Fernando Nicolazzi, professor Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto, no artigo “À sombra de um mestre. Gilberto Freyre leitor de Euclides da Cunha” comenta a importância da leitura de Os sertões de Euclides da Cunha para Gilberto Freyre, apontando que, “entre os anos 1920 e 1940, opera-se uma construção intelectual importante: de um lado, a literatura-ficção cujo expoente maior era Machado de Assis, o autor ‘alienado’; de outro, a literatura-documento, elaborada sob o manto epistemológico da ciência, personificada na obra de Euclides da Cunha, o ‘escritor-modelo’. Foi diante dessa situação, a qual provavelmente provocaria o riso irônico de Sílvio Romero, que alguns dos ensaios de interpretação histórica no contexto da Primeira República foram escritos, dentre os quais certamente os primeiros livros de Gilberto Freyre”. Segundo Nicolazzi, o livro de Euclides da Cunha serviu para Gilberto Freyre como uma espécie de contraponto intelectual: “Se Os sertões foi construído a partir de uma noção coerente de distância, tanto do ponto de vista espacial (litoral/sertão) quanto temporal (o sertanejo vivia com trezentos anos de atraso em relação à população litorânea), Casa-grande & senzala foi escrito segundo uma perspectiva de proximidade no espaço e no tempo: Freyre projetava o contexto da casa-grande como modelo para o restante do território brasileiro, ao mesmo tempo em que escrevia segundo uma concepção homogênea de temporalidade, em que, mais do que rupturas, prevaleciam as continuidades”.

A obra de Freyre recebeu críticas sobretudo a partir da década de 1960, principalmente acerca de seu método, acusado de intuitivo e não científico, mas também por sua inclinação política, acusada de representar uma elite aristocratizante e conservadora. Parte dessas acusações foi recentemente retomada pelas já mencionadas afirmações do sociólogo Jessé de Souza, a quem a historiadora Maria Lucia Garcia Pallares-Burke, uma das maiores especialistas na obra de Gilberto Freyre, em entrevista concedida ao Suplemento Pernambuco, respondeu:

“Nenhum livro pode oferecer uma interpretação de um país vasto sem simplificar, sem enfatizar alguns aspectos em detrimento de outros. Daí a necessidade, ou a inevitabilidade de interpretações rivais, o que as de Freyre e Buarque de Holanda, em certo sentido, são. A visão de Sergio é, por exemplo, muito mais crítica da sociedade brasileira do que a de Freyre. Pode-se dizer que enquanto a pergunta que Freyre procurava responder com seu livro era ‘quem somos nós’, a pergunta que Buarque de Holanda tentava responder era: ‘o que deu errado com o Brasil?’ E enquanto Freyre, sem negar os problemas brasileiros, enaltecia em Casa-Grande a potencialidade que tem a cultura brasileira para a ‘riqueza dos antagonismos equilibrados’, Sergio, em Raízes, tinha uma visão bastante pessimista. Segundo ele, religiosidade dos brasileiros é superficial, seus intelectuais são inconsistentes e contraditórios, falta ao país disciplina, coesão, democracia, ordem e racionalidade. Na verdade é como se o livro tivesse sido escrito por um alemão, já que os valores enaltecidos por Buarque são ordem, disciplina, racionalidade e burocracia weberiana”. Pallares-Burke adverte que clássicos, como são os estudos da sociedade brasileira de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, “frequentemente são mal entendidos ou manipulados para apoiarem argumentos com os quais seus autores provavelmente não teriam concordado. Jessé de Souza, por exemplo, atribui a Freyre e a Buarque de Holanda uma idealização da sociedade norte-americana, ‘um paraíso na terra’, como diz; ideia que quando absorvida pelos brasileiros, estaria por trás, segundo ele, do complexo de inferioridade, do complexo de vira-lata que ‘nos’ marca. Ora, tendo estudado Freyre e sua formação em profundidade, não encontro base em seu pensamento para sustentar a interpretação desse autor”. De acordo com a historiadora, qualificar as interpretações dos chamados “explicadores” do Brasil, como “cientificamente nulas”, como faz Jessé de Souza, “é, sem dúvida, uma forma violenta e bombástica de desclassificá-los e desqualificá-los – e de atrair grande público. Argumentar de um modo não bombástico implicaria refletir, por exemplo, sobre a inevitabilidade de se ser um tanto impressionista quando se tenta interpretar um país vasto e complexo, mesmo quando se supõe que uma abordagem ‘científica’ da realidade é possível. E também implicaria refletir sobre a necessidade de se ter um imenso time de pesquisadores para produzir um trabalho científico sobre toda a sociedade brasileira; e mais ainda, sobre o problema de se reconciliar os pontos de vista variados desse grande time de pesquisadores, já que, sendo humanos, eles não veriam a sociedade estudada do mesmo modo. Pois bem, apesar de Souza demolir Buarque de Holanda e outros teóricos, sob a acusação de serem não-científicos, é no mínimo irônico vê-lo, em certo sentido, como que ilustrando os comentários feitos por Buarque sobre os intelectuais brasileiros, quando diz que eles tendem a dedicar pouca estima às verdadeiras especulações intelectuais, mas devotam ‘amor à frase sonora’ e à ‘erudição ostentosa’, que servirão, no final das contas, apenas para marcar uma distinção social e não para fazer da inteligência um “instrumento de conhecimento e de ação”.

 

 

Os Sertões, Raízes do Brasil e Casa-grande & senzala reforçam a ideia de que o homem é produto do meio, da raça e do momento histórico. A história incorpora a sociologia, que abarca a vida e a prosa cotidianas: a explicação das raízes de nossas lógicas sociais, e consequentemente políticas, celebra uma concepção que jamais deixou de narrativizar o encontro entre senhores e escravos. Como disse Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, “somos uns desterrados em nossa terra”.

Ressoa, em justaposição que cala em sugestão, a imagem mais forte, boa para analisar o sentido do pensamento social de maneira ampla pois deslocada da questão econômico-social, do massacre de Canudos:

“E volvendo de improviso às trincheiras, volvendo em corridas para os pontos abrigados, agachados em todos os anteparos, esgueirando-se cosidos às barrancas protetoras do rio, retransidos de espanto, tragando amargos desapontamentos, singularmente menoscabados na iminência do triunfo, chasqueados em pleno agonizar dos vencidos — os triunfadores, aqueles triunfadores, os mais originais entre todos os triunfadores memorados pela história, compreenderam que naquele andar acabaria por devorá-los, um a um, o último reduto combatido. Não lhes bastavam 6 mil mannlichers e 6 mil sabres; e o golpear de 12 mil braços, e o acalcanhar de 12 mil coturnos; e 6 mil revólveres; e vinte canhões, e milhares de granadas, e milhares de schrapnels; e os degolamentos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e dez meses de combates, e cem dias de canhoneio contínuo; e o esmagamento das ruínas; e o quadro indefinível dos templos derrocados; e, por fim, na ciscalhagem das imagens rotas, dos altares abatidos, dos santos em pedaços — sob a impassibilidade dos céus tranqüilos e claros — a queda de um ideal ardente, a extinção absoluta de uma crença consoladora e forte…

 

Send to Kindle

Comentários