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O ateísmo não é tão fácil como parece

22 setembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“[…] a religião segue a trajetória da arte e da sexualidade, dois outros principais elementos do que poderíamos chamar esfera simbólica. Também tendem a passar da propriedade pública para mãos privadas à medida que avança a Idade Moderna. A arte que outrora louvava Deus, lisonjeava um senhor, entretinha um monarca ou celebrava as proezas militares da tribo passa a ser basicamente uma questão de autoexpressão individual”.

Salvador Dalí, da série de gravuras feitas para ilustração de “A Divina Comédia”, de Dante [c. 1960]

Acaba de ser publicado no Brasil o livro A morte de Deus na cultura, de Terry Eagleton, com tradução de Clóvis Marques, pela editora Record. Eagleton investiga as contradições, dificuldades e significados do desaparecimento de Deus na era moderna; de acordo com sua apresentação ao volume: “Este livro fala menos de Deus que da crise gerada por seu aparente desaparecimento. Com isso em mente, parto do iluminismo para no fim chegar à ascensão do Islã radical e à chamada guerra ao terror. Começo mostrando de que maneira Deus sobreviveu ao racionalismo do século XVIII e concluo com seu dramático ressurgimento em nossa época supostamente sem fé. Entre outras coisas, esta narrativa tem a ver com o fato de que o ateísmo de modo algum é tão fácil quanto parece”.

Fundamentado em uma vasta articulação de ideias e problematizações de pensadores do Iluminismo até a contemporaneidade, o autor discute o estado da religião antes e depois do 11 de setembro; as ironias do capitalismo ocidental, que deu origem não apenas ao secularismo, mas também ao fundamentalismo; os insatisfatórios substitutos surgidos a partir do pós-ilumunismo a fim de preencher o vazio deixado pela ausência de Deus.

Eagleton, com a elegância característica de seu texto, analisa as capacidades únicas da religião, a possibilidade da cultura e da arte como caminhos modernos para a salvação, o impacto no ateísmo da chamada guerra ao terror. Sua investigação realiza assim um estudo do pensamento moderno que acaba por servir como advertência oportuna em nosso preocupante cotidiano político: se Deus está morto, o próprio homem também está chegando ao fim.

Nas palavras de John McDade, ex-reitor do Heythrop College, na Inglaterra, em artigo publicado na revista The Tablet, conforme traduzido e divulgado pelo Instituto Humanitas da Unisinos, a religião, “de acordo com Eagleton, é ‘visão e instituição, experiência sentida e projeto universal’; mas na primeira etapa da ‘morte de Deus’, a da modernidade pós-iluminista e do descarte dos códigos da identidade e do modo de vida cristãos, a sociedade inventa uma série de substitutos que possam preencher a lacuna e replicar esses objetivos”. Assim, surgem as “formas de divindade deslocada”, que podem ser a cultura, a nação, o Estado, a ciência, o Outro, o desejo: “o ateísmo, diz ele, não é tão fácil quanto parece; geralmente ele é religião com outra roupagem; uma mutação da fé religiosa”, pontua McDate; ele acrescenta: “Se um instinto de um Deus transcendente permanece, insatisfeito com os substitutos socialmente construídos em oferta, ele é privatizado, e as pessoas “acreditam” (apenas) sem ‘pertencer’ socialmente a qualquer lugar”. De modo que, para “finalmente se livrar de Deus, a própria subjetividade é remodelada, despojada de todas as pretensões à verdade e valor objetivos. No fim, chega ‘o ateísmo autêntico’, no qual Deus, a fonte de valor e de propósito, aquele que nos diz quem somos e para que existimos, é deslocado pelo ‘eu’ automodelado e sem fundamentos, engajado em nada mais do que trivialidades divertidas”.

De acordo com o crítico brasileiro Kelvin Falcão Klein, em sua ótima resenha, publicada pelo Suplemento Pernambuco, neste livro Eagleton “retoma uma série de pontos caros não apenas ao autor em questão e à sua obra, mas também a uma parte significativa do campo de debate cultural e teórico dos últimos anos”; Klein, portanto, em primeiro lugar contextualiza-o: “Muitos pensadores, intelectuais e filósofos, das mais variadas extrações ideológicas e nacionais, têm publicado trabalhos que abordam as relações entre religiosidade, política, sociedade e cultura. Dos mais acessíveis em edições nacionais, pode-se citar Giorgio Agamben – com trabalhos como O reino e a glória e Opus Dei –, Slavoj Žižek – O absoluto frágil e Sobre a crença –, Alain Badiou – São Paulo: A fundação do universalismo –, John Gray – Missa negra: Religião apocalíptica e o fim das utopias –, entre outros. Em maior ou menor medida, todos eles fazem referência a certos nomes centrais para a reflexão sobre a secularização e a metamorfose dos conceitos teológicos na modernidade, ‘instauradores de discursividade’ como Marx, Nietzsche e Walter Benjamin”. Klein comenta a tentativa histórica, a partir do Iluminismo, traçada por Eagleton, de substituição da religião: o século XIX conheceu a emergência de um movimento que, diz ele, “tentava, sim, a substituição da religião como esfera simbólica dominante na sociedade – e o que foi designado para ocupar seu lugar foi, em termos gerais, a estética, e, em termos específicos, a arte. No fim das contas, o substituto ‘arte’ tornou-se, na verdade, substituto de um substituto anterior – a ‘filosofia’, que havia sido a escolha da geração anterior, dos iluministas. ‘A arte pode ser mais palpável que a filosofia’, escreve Eagleton, ‘a imagem, mais convincente que o conceito – mas tende a deixar o populacho quase igualmente frio. É matéria por demais secundária para substituir a fé religiosa, que liga a conduta diária de incontáveis homens e mulheres comuns à mais sublime das verdades’. É precisamente essa ligação entre pensamento e ‘conduta diária’ que Eagleton vê como a questão fundamental tanto da cultura como da política, ontem e hoje”. O absoluto insondável, comenta o crítico, “que é o principal insumo da religião, segue sendo reivindicado” pelos iluministas, depois, pelos idealistas alemães; o romantismo não o busca mais enquanto sistematização, mas no transbordamento da expressividade e da emoção. Seguindo a linha cronológica que traça o panorama de Eagleton, Klein aponta, os dois capítulos “A crise da cultura” e “A morte de Deus”, que cobrem o final do século XIX e início do XX, são complementares, “constituindo um arco que vai de Marx e Nietzsche até Durkheim, Freud e Walter Benjamin. Essa virada de século marca uma transformação na percepção da religião, agora considerada ‘uma síndrome que exige vigilante interpretação’, e não uma força passiva esperando melhor utilização. Em linhas gerais, contudo, o absoluto ainda ronda a visão de mundo desses três desmistificadores: a sociedade utópica sem classes de Marx, sua ‘hipótese comunista’, é um eco da cidade celestial; a morte de Deus de Nietzsche, que deve acontecer em paralelo à morte do homem comum, deve igualmente abrir espaço para o Übermensch, o ‘super-homem’, uma versão secular de Cristo; e psicanálise de Freud, nas palavras de Eagleton, é ‘um ateísmo que se ocupa de um desejo quase religioso de uma realização impossível’”.  

Para o crítico, o livro trata “menos sobre a ‘morte’ do que sobre a ‘transformação’ da ideia de Deus”. E a “cultura”, anunciada no título, deve ser compreendida com restrição: a cultura ocidental, europeia.

Terry Eagleton é um proeminente teórico literário britânico, crítico e intelectual público. Atualmente é professor de Literatura Inglesa na Universidade de Lancaster, professor de Teoria Cultural na Universidade Nacional da Irlanda e professor visitante de Inglês e Literatura na Universidade de Notre Dame.

A Record disponibiliza um trecho de A morte de Deus na cultura para leitura.

 

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“A religião sempre foi uma das maneiras mais eficazes de justificar a soberania política. Certamente seria absurdo reduzi-la a essa função. Se serviu de covarde desculpa na disputa pelo poder, também funcionou, de tempos em tempos, como espinho no seu sapato. Mas Deus desempenhou um papel tão vital na sustentação da autoridade política que o declínio de sua influência numa época secular não podia ser encarado com serenidade nem mesmo por aqueles que nem de longe acreditavam nele. Da razão iluminista à arte modernista, todo um espectro de fenômenos imbuiu-se da missão de providenciar formas substitutivas de transcendência, preenchendo o vazio deixado pela ausência de Deus. Um dos esteios da minha tese é que o mais eficiente desses substitutos tem sido a cultura, no sentido amplo da palavra”.

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A MORTE DE DEUS NA CULTURA

Autor: Terry Eagleton
Editora: Record
Preço: R$ 31,92 (224 págs.)

 

 

 

 

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