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Um conto, uma peça, um poema

10 novembro, 2016 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Iberê Camargo

A editora 34 acaba de lançar Sul, de Veronica Stigger. O volume reúne três textos literários, três gêneros distintos de uma das vozes mais fortes da literatura brasileira atual. Um conto, uma peça teatral curta e um poema formam um instigante quebra-cabeça em que, surpreendentemente, todas as peças se encaixam.

O primeiro texto, “2035”, é um relato de tom kafkiano e sombrio situado num futuro distópico. Já na peça “Mancha”, duas personagens com o mesmo nome, Carol 1 e Carol 2, travam um diálogo entre cômico e absurdo em torno de uma mancha de sangue no chão de um apartamento. Por fim, o longo poema “O coração dos homens” se constrói sobre memórias de infância em que se confundem verdade e mentira, fato e ficção. Ligando os três textos, sangue, muito sangue, e um uso extremamente consciente e singular da linguagem, que, do trágico ao cômico, do melancólico ao escatológico, encontra sempre a forma e o tom precisos. Publicado originalmente na Argentina, em 2013, Sul é lançado agora em português – porém, acrescido de um texto oculto, que caberá ao leitor desvelar.

Em 31 de dezembro de 2011, em entrevista ao site “O palco e o mundo”, Stigger, questionada sobre a inclusão do conto “2035” em Sul, conto já publicado em uma antologia de ficção de guerra, e sobre sua opinião, enquanto crítica de arte, sobre a possibilidade de, nele, a violência ser vista como rito, disse:

“Em ‘2035’, a violência não é gratuita, ela não só pode como deve ser compreendida dentro de uma lógica ritual – mais especificamente, sacrificial. O sacrifício, nos lembra René Girard, serve como uma forma de canalização da violência, ao transferir para uma vítima sacrificial as violências e tensões internas de uma sociedade. Assim, ritualmente, ao se sacrificar a vítima, apaziguam-se essas violências e tensões e impede-se a eclosão de novos conflitos. A violência tem aí, portanto, um caráter expiatório. No conto em questão, percebe-se, pela descrição do cenário, que a narrativa se ambienta num lugar arruinado e desolado, num lugar que talvez tenha passado por uma catástrofe ou uma guerra. É possivelmente contra essa atmosfera de catástrofe e guerra que se atua ritualmente em ‘2035’. O que torna tudo mais complexo e terrível é que o conto não é narrado a partir do ponto de vista dos sacrificadores, mas do sacrificado”.

A autora diz, ainda, sobre o conto: “[…] queria criar um clima de estado não tanto em guerra, mas pós-guerra. Esse estado é sugerido pela descrição do cenário: uma terra arrasada, desértica, em que as pessoas temem sair às ruas e se comunicar umas com as outras. Como o título deixa claro, “2035” se passa no futuro, na data das comemorações dos duzentos anos da Revolução Farroupilha. O conto se originou de um convite para participar de uma coletânea de narrativas em que cada escritor deveria inventar uma história que dissesse respeito a uma determinada guerra. A mim, coube a Guerra dos Farrapos. Lembrando-me das grandes comemorações dos cem anos da Revolução Farroupilha, com bandeiras da Alemanha nazista (entre outras) balouçando no Parque Redenção, queria imaginar como seriam as comemorações dos duzentos anos da guerra, num futuro próximo. Foi aí que me veio à mente esse cenário de destruição. Não tenho uma visão muito otimista do meu sul…”.

Ainda na mesma entrevista, questionada sobre Sul ser seu maior exemplo de “literatura feminina”, Stigger analisou: “Não sei se existe isto que você chama de ‘literatura feminina’. Claro, há livros que só poderiam ter sido escritos por uma mulher, mas não sei se isso configura uma ‘literatura feminina’. De qualquer modo, também não saberia dizer se, dentre os meus, este livro seria o mais evidentemente escrito por uma mulher. Dois dos aspectos para os quais você chama a atenção – a vítima ser uma mulher em ‘2035’ e a redução dos homens a líquidos em ‘Mancha’ – já foram, de uma maneira ou de outra, tratados em livros anteriores. Já em O trágico e outras comédias, meu primeiro livro, há um conto, chamado ‘A chuva’, em que os homens são reduzidos a seus ‘caralhos’. Havia tanto naquele conto quanto agora há em ‘Mancha’ um deliberado apagamento da figura masculina. No livro seguinte, Gran Cabaret Demenzial, o conto de abertura é sobre uma mulher que se automutila: em certa medida, ela é sua vítima e seu algoz ao mesmo tempo. A novidade em Sul – e talvez seja o elemento mais propriamente ‘feminino’ – é a abordagem tão crua e direta da menstruação. Sobre isso, não sei se um homem seria capaz de escrever como escrevi, ou como outra mulher poderia escrever”.

Veronica Stigger é escritora, crítica de arte e professora universitária. Possui doutorado em Teoria e Crítica de Arte pela Universidade de São Paulo e realizou pesquisas de pós-doutorado na Università degli Studi di Roma “La Sapienza”, no Museu de Arte Contemporânea da USP e no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É coordenadora do curso de Criação Literária da Academia Internacional de Cinema e professora dos cursos de pós-graduação em História da Arte e Fotografia da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo. Como curadora, foi responsável pelas exposições Maria Martins: metamorfoses e O útero do mundo, ambas no MAM-SP (2013 e 2016), e, com Eduardo Sterzi, Variações do corpo selvagem: Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo, no SESC Ipiranga (2015). É autora de dez livros de ficção, entre eles Os anões (Cosac Naify, 2010), Delírio de Damasco (Cultura e Barbárie, 2012), Opisanie świata (Cosac Naify, 2013) e os infantis Dora e o sol (Editora 34, 2010) e Onde a onça bebe água (Cosac Naify, 2015, em coautoria com Eduardo Viveiros de Castro). Com Opisanie świata, seu primeiro romance, recebeu os prêmios Machado de Assis, São Paulo (autor estreante) e Açorianos (narrativa longa).

 

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[trecho]

 

O coração dos Homens

 

Quando pequena, fui o espelho numa encenação de “Branca de Neve e os sete anões”.

A peça era toda falada em inglês.

E o público, crianças monoglotas da pré-escola.

 

Tínhamos dez anos e mal falávamos inglês.

Aliás, mal falávamos português.

Havia um colega que dizia “largatixa” em vez de “lagartixa”.

 

Ele nunca adoçava o suco de uva com açúcar mascavo.

Ouvia “mascado”

e tinha nojo.

 

Esse meu colega também sofria de incontinência urinária

e não tinha os mamilos:

em seu abdômen só havia o umbigo.

 

Para nos assustar, ele levantava a camiseta

e corria atrás de nós mostrando o branco dos olhos.

Tínhamos muito medo dele.

 

Não lembro qual foi seu papel na peça.

Lembro quem foi o Príncipe

e lembro quem foi a Branca de Neve.

 

A Branca de Neve tinha alergia a lã.

Só usava roupa de tecido sintético,

especialmente um casaco azul e amarelo de náilon.

 

Em seus aniversários, se os colegas não levavam presente,

ela não tinha pudores: impedia-os de entrar na festinha

e anotava os nomes dos relapsos numa caderneta cor-de-rosa.

 

O Príncipe era filho da professora da primeira série.

Ele se tinha em altíssima conta

e todas as meninas queriam namorar com ele.

 

(Menos eu.

Eu era apaixonada por outro colega:

um menino moreno, brincalhão, que morreu de leucemia aos onze anos.)

 

Mas não lembro mesmo o papel do meu colega sem mamilos.

Talvez tenha sido um dos sete anões,

embora eu também não lembre também quem foram os outros seis.

 

Eu era o espelho.

Minha melhor amiga era a madrasta.

Quando a madrasta se transformava em bruxa, aí já era outra pessoa.

 

Também não lembro quem fazia a madrasta quando esta se transformava em bruxa.

Mas lembro que ela dizia:

“This is the poisoned apple”.

[…]

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SUL

Autor: Veronica Stigger
Editora: 34
Preço: R$ 24,50 (96 págs.)

 

 

 

 

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