“O domínio violento e vergonhoso que a estupidez exerce sobre nós é revelado por muitas pessoas ao demonstrarem-se surpresas de maneira amável e conspiratória quando alguém, a quem confiam, pretende evocar esse monstro pelo nome”.
Mesmo enquanto grande romancista, o nome de Robert Musil vincula-se à escrita ensaística. Sobre a estupidez, considerado um de seus grandes ensaios, foi publicado no ano passado no Brasil pela editora Âyiné, com tradução de Simone Pereira Gonçalves. O ensaio nasceu de uma conferência, proferida em 1937, a convite da Federação Austríaca do Trabalho. Trata-se de uma penetrante, arguta e irônica conferência sobre o sempre relevante tema da estupidez humana.
Musil sugere uma reflexão filosófica, que pondera ainda ser preliminar, porém relevante. Para ele, era comum à maioria dos filósofos e intelectuais de seu tempo a preferência pela definição a sabedoria em detrimento da compreensão da estupidez – que, adverte, não é necessariamente antônimo de sabedoria. Há, para o autor, dois tipos básicos de estupidez. Uma é a estupidez honesta – falta de inteligência talvez honrada, associada a limitações intrínsecas de um indivíduo: “Pobre em representações e em vocabulário, não sabe muito bem como se servir dele. Prefere o banal, cuja frequência torna a assimilação mais fácil; e quando assimila qualquer coisa, não tem muita predisposição para consentir que lha retirem logo em seguida, nem para permitir que a analisem, ou para jogos de ambiguidade em relação a ela” [citação da edição portuguesa, ed. Relógio D’Água, 2012, tradução de Manuel Alberto]. Outra, a estupidez inteligente – errática, pretensiosa é resultado da abdicação voluntária do pensamento crítico. Esta, é uma fraqueza da inteligência em relação a um objeto particular, é uma doença da cultura, é algo que nunca produz uma ideia significativa e válida.
De acordo com resenha de Aguinaldo Medici Severino, Musil pondera que, para afastar-se desta segunda estupidez deve-se evitar “iludir-se com regras simples como: ‘Abstém-te de julgar e decidir cada vez que te faltem informações’, pois assim agindo ficaríamos todos imobilizados, o mundo se deteria (e os maus governantes continuariam a nos oprimir, por inércia). Como nosso saber e poder são limitados podemos sim emitir juízos prematuros, mas devemos corrigir os defeitos destes juízos assim que for possível. Musil acredita na maior eficiência do preceito: ‘Age tão bem como possas e tão mal como tem de ser, permanecendo consciente das margens de erro de tua ação!’. Agindo assim escapamos da escravidão mental a que nos submetemos quando aceitamos ideias e reflexões alheias, quando toleramos a mentira e a opressão política de nosso tempo”.
O grande problema da estupidez é a existência, em muitos aspectos, de uma “imitação social das fraquezas mentais”, e as sociedades podem ficar doentes e incapacitadas por contaminação de práticas estúpidas individuais.
Érica Gonçalves de Castro, doutora em Letras pela USP e especialista na obra do romancista, no artigo “Romance de formação de uma ideia – O homem sem qualidades e o projeto literário-filosófico de Robert Musil” aponta, sobre a relevância do ensaio em seu pensamento e criação literária-filosófica: “A definição de romance como ‘romance de formação de uma ideia’ foi registrada por Robert Musil (1880-1942) em uma das páginas de seus diários e indica, de forma inequívoca que, para o escritor austríaco, a literatura e a filosofia são instâncias convergentes. Musil atribuía à literatura a tarefa de oferecer uma alternativa aos hábitos mentais ou de leitura adquiridos ao longo da evolução cultural. A literatura lhe surge como uma alternativa de intervenção, na medida em que as ciências da época lhe pareciam incapazes de formular uma proposta de transformação do estágio de alienação e apatia que predominava na Europa pós-Primeira Guerra Mundial. Filósofo de formação e ensaísta atento aos problemas de seu tempo, Musil deixou alguns escritos significativos sobre a crise de autoridade intelectual por que passava a Europa de então. Seu principal alvo era a filosofia que, segundo ele, vinha se afastando de seu sentido primeiro, tendendo a um pensamento sistemático e ao estabelecimento de sínteses teóricas e a postulações que deixavam a subjetividade em segundo plano”. De acordo com Castro, a comum categorização do monumental romance inacabado de Musil, O homem sem qualidades, como um “romance ensaístico”, portanto, merece uma ressalva, pois seu ensaísmo, “antes de ser um recurso formal, consiste numa atitude, ou mesmo numa filosofia que envolve tanto o autor quanto o personagem – Ulrich define a aventura a que se propõe como a ‘utopia do ensaísmo’. Assim, o ensaísmo não é só um princípio construtivo, mas também crítico. Nesse sentido, é preciso observar que, aquilo que a terminologia crítica classifica como ‘romance ensaístico’ equivale, para Musil, ao processo de ‘formação das ideias’ no interior do romance”.
Em outro excelente artigo, intitulado “Sobre o ensaísmo de Robert Musil”, Érica de Castro indica que “a noção de ensaísmo de Robert Musil adquire o duplo estatuto de uma ‘utopia’ e de uma atitude diante da realidade. É esse duplo viés que permitirá à arte preservar-se como potência crítica e epistemológica num contexto de crise cultural e de valores na Europa no início do XX”. Essa noção de ensaísmo em sua obra, de acordo com a comentadora, “ganha desdobramentos singulares que vão além da produção ensaística ou da crítica literária propriamente dita, convertendo-se num princípio ético e crítico”. No início do século XX, contextualiza Castro: “A necessidade de representar experiências vividas numa realidade transformada, aliada à mobilidade do estilo ensaístico garantem a incorporação dos novos temas à forma aberta da épica. É justamente nessa época que o ensaio começa a ganhar espaço no romance. No entanto, num contexto de declínio da cultura burguesa, o romance deixará de se ater a estórias – a ‘destinos individuais’, diria Musil [Der Mann ohne Eigenschaften, p. 1284] – direcionando-se para o ensaísmo e a consequente fragmentação formal. O colapso da coerência narrativa reflete diretamente as dúvidas e contradições candentes na Europa da época, e esse processo natural de assimilação levaria o romance de língua alemã a atingir, enfim, seu estágio mais avançado – o que na Inglaterra e na França já havia acontecido nos dois séculos anteriores”. Assim, a exatidão das ciências “deveria ser transferida para o domínio do sentimento, num modelo antropológico em que os assuntos da existência seriam abordados da mesma forma pela qual as ciências da natureza analisam seus fenômenos – idéia que também será formulada ao longo do romance: ‘É de se pensar que conduzimos muito irracionalmente nossos assuntos humanos, se não os atacamos conforme a ciência, que teve um progresso tão exemplar’ [O homem sem qualidades, p. 272]. O ensaísmo será o movimento do espírito que permite que a reflexão se desloque da ordem objetiva para a subjetiva, conservando, contudo, seu viés crítico – analítico. Essa ‘utopia da exatidão’, que Musil desenvolve no romance, ao lado da do ensaísmo, é a garantia de que a reflexão ensaística não cairá na pura abstração nem desenvolverá um pendor para o irracionalismo. O intelecto representa, para o espírito, uma garantia de rigor que só poderá beneficiar a vida se esta não estiver reclusa a um dos domínios”.
“O homem que quer a verdade torna-se erudito; o homem que quer liberar sua subjetividade torna-se, talvez, escritor; mas o que fará um homem que quer qualquer coisa entre esses dois pólos?” [MUSIL, O homem sem qualidades, p. 281]. Eis a indagação, diz Érica de Castro, “que move o homem sem qualidades. A resposta, sabemos, será o ensaísmo”.
Autor: Robert Musil
Editora: Âyiné
Preço: R$ 19,00 (62 págs.)