“[…] na forma, a visão ganha uma força que até esse momento tinha sido atribuída apenas ao conceito” – Carl Einstein, trecho de seu romance Bébuquin ou les Dilettantes du Miracle, de 1912.
Carl Einstein e a Arte da África, organizado por Elena O’Neill e Roberto Conduru e publicado pela EdUERJ em 2015, reúne os textos pioneiros de Carl Einstein sobre esculturas e objetos africanos e os contrapõem a ensaios de estudiosos e comentadores que buscam contextualizar sua incontestável relevância e sua múltiplas decorrências teóricas. Trata-se de uma publicação de referência para os estudos sobre arte e para reflexões acerca do etnocentrismo museológico que canonicamente rege a crítica de arte.
Poeta de vanguarda, historiador e teórico da arte, escritor, mediador cultural entre França e Alemanha, Carl Einstein (1885-1940) foi o primeiro teórico ocidental a estudar formalmente a arte africana como uma legítima expressão artística.
Seu livro Negerplastik, lançado na França em 1915 [do qual há uma boa tradução para o português, realizada por Fernando Scheibe e Inês de Araújo e publicada pela editora da UFSC, em 2011], compara a estatuária africana ao cubismo europeu na problematização do espaço – destacando a “sinceridade espacial da escultura negra”. Intelectual ativo, Einstein frequentou os ateliers dos pintores cubistas e manteve uma amizade suradoura com Daniel-Henry Kahnweiler; foi cofundador da revista Documents, em 1929, junto com Georges Bataille, Michel Leiris, Georges Wildenstein e Georges-Henri Rivière.
Carl Einstein e a Arte da África é dividido em duas partes. Na primeira, apresenta uma coletânea de textos de Carl Einstein que exerceram um papel fundamental na inauguração dos estudos sobre a arte da África como fato estético. Trata-se de material publicado tanto em livros quanto em revistas, na Alemanha e na França, entre 1915 e 1930, cujo esforço visa livrar a arte africana da submissão à categoria preconceituosa de “primitiva” e incluí-la na história universal da arte – analisando seus atributos, negados pela ideologia colonialista veiculada pelo discurso da missão civilizadora.
A segunda parte do livro dedica-se a reunir ensaios e artigos que abordam o autor e a sua obra, construindo uma releitura de seus escritos. Dos organizadores, especialistas na obra de Carl Einstein, o artigo de Roberto Conduru destaca a natureza parcial da obra do crítico alemão e a boa recepção às suas análises no Brasil, ao passo que o ensaio de Elena O’Neill identifica armadilhas na formulação de conceitos utilizados por Einstein utilizados em diferentes contextos. A edição conta ainda com contribuições de Liliane Meffre, José Gomes Pinto, Ezio Bassani, Jean-Louis Paudratt e introdução de Kabengele Munanga.
De acordo com a uruguaia Elena O’Neill, no artigo “A escrita atuante de Carl Einstein”, dentre os textos de Einstein sobre a arte africana, destaca-se Negerplastik: “Apesar de ter sido publicada durante a Primeira Guerra Mundial, capturou a atenção tanto de especialistas como de amadores na Alemanha, se bem que na França eram poucos os que estavam familiarizados com as noções por ele discutidas. A publicação, breve, densa desde o ponto de vista teórico e inovadora pela abordagem de objetos até esse momento considerados como etnográficos nos museus da França, Bélgica e Alemanha, se destaca por tratar de uma arte que provocou e interessou a artistas como André Derain, Henri Matisse, Maurice de Vlaminck, Pablo Picasso e Georges Braque. Em grandes linhas, no plano teórico, Einstein discute as categorias de ‘pictórico’ e ‘escultórico’, e, independentemente do meio artístico empregado, ressalta as características da arte negra, as soluções espaciais na escultura encontradas pelos artistas africanos e sua similitude com as invenções dos artistas cubistas na pintura. Os cubistas captaram que a figuração dos objetos mediante signos produziam diversos sentidos, assim como perceberam a combinação, transformação e reformulação de signos e de grupos de signos na escultura africana. Por outra parte, as esculturas da África nos mostram aquilo que os artistas sabem, não apenas o que eles olham. As esculturas são objetos reais inseridos no mundo, não precisam de uma base, um muro ou uma arquitetura preexistente; as máscaras, associadas a um suporte humano, funcionam como esculturas em movimento. Muros, bases e arquiteturas foram ‘apoios’ frequentes na escultura europeia, definida por Carl Einstein como ‘baixo-relevo’, que talvez tenha tido sua origem na proibição judaica de criar ídolos. Tais tendências iconoclastas atravessaram a arte cristã e fizeram da escultura um ornamento da arquitetura, com o qual se perdeu qualquer existência da escultura no espaço. Além dos múltiplos sentidos que a manipulação das esculturas negras admitia (por exemplo, a integração a outros conjuntos), as dimensões, a monocromia, assim como seu caráter de signo, distinguia essas esculturas dos seres vivos com os quais compartiam o espaço. […] Carl Einstein confere à escultura negra o estatuto de arte de primeiro nível. Aproximando as invenções cubistas à escultura negra, analisando a arte africana a partir de categorias não africanas, o autor aspira a uma reestrutura da visão sem referência a um repertório prévio de imagens, próprias de uma obra ou gênero de arte, de um artista ou de um período artístico. Critica o conceito de ‘primitivismo’, no sentido utilizado à época – estado arcaico de um desenvolvimento artístico ou cultural progressivo. Para ele, a noção de primitivismo ultrapassa o preconceito eurocêntrico do termo, destacando o aspecto plástico dos objetos, resultado de uma experiência dinâmica não mediada por convenções e preconceitos. Trata-se do processo visual enquanto experiência original e constitutiva do real: a imagem resultante desse processo não é, para ele, apenas um resíduo inerte da sensação ou da percepção”. Para O’Neill, a “escrita de Einstein não se encaixa nem se estrutura numa análise do contexto histórico social. Ao contrário, ela diz respeito à existência enquanto esforço por ultrapassar os limites da linguagem, que ele considerava como limites do mundo. Einstein adjudicou à arte e à linguagem a tarefa de libertar o homem de imagens ossificadas e modos de pensar rígidos. Em Einstein, a realidade se constrói e se transforma sem cessar: ele defende uma arte na qual o artista modifica a realidade e não está preso a um excesso de racionalização, normatização ou a uma linguagem aprendida; acredita numa arte engajada na transformação social, na qual a forma reconfigura a subjetividade”.
Carl Einstein questiona as representações do “outro” e do “primitivo”, articulando antropologia e teoria da arte e problematizando o regime de enunciação estética das vanguardas, no final do século XIX e início XX, que levaram as chamadas “artes negras” para o centro das discussões artísticas da Europa, ao conceberem as produções plásticas não ocidentais como modelo e inspiração formais e estéticos.
De acordo com Luiza Amaral, historiadora social da cultura, no artigo “A escrita combativa de Carl Einstein”: “Nas frentes de batalha pela experiência, Einstein se posiciona contra as concepções apriorísticas que mutilam a visão da obra de arte, fazendo com que a relação estabelecida entre a obra e observador seja velada por uma fina seda de juízos antecedentes. No combate pela vivência plena da obra, Einstein militava contra os aforismos metodológicos e as convenções históricas e estéticas que mascaravam a real potência da arte”.
CARL EINSTEIN E A ARTE DA ÁFRICA
Autores: Elena O’Neill e Roberto Conduru (orgs.)
Editora: EdUERJ
Preço: R$ 40,70 (264 págs.)