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Quando as imagens tomam posição

11 outubro, 2017 | Por Isabela Gaglianone

Para saber é preciso tomar posição. Gesto nada simples. Tomar posição é situar-se pelo menos duas vezes, em pelo menos duas frentes que toda posição comporta, pois toda posição é, fatalmente, relativa.

Hannah Höch, colagem, 1919

A figura do poeta e dramaturgo Bertolt Brecht serve de guia para Georges Didi-Huberman caminhar por entre as encruzilhadas da estética no século XX, através de uma reflexão que perpassa temas como a guerra, o exílio, as vanguardas estéticas e o nascimento da indústria cultural e apresenta questionamentos de romancistas, poetas, filósofos e artistas, para refletir acerca do lugar da imagem e das condições de uma possível política da imaginação. O olho da história [L’oeil de l’histoire], é composto por cinco volumes publicados entre 2009 e 2015. Traduzido por Cleonice Paes Barreto Mourão, o primeiro volume, Quando as imagens tomam posição, acaba de ser publicado pela Editora UFMG.

Da obra de Brecht, Didi-Huberman analisa fundamentalmente o “Diário de trabalho” e o ensaio “ABC da guerra”, textos de denúncia, em que é marcante a condição de exilado político do dramaturgo. O caso muito singular de Brecht eleva-se a um tipo de universalidade intempestiva, como observa Stéphane Olivesi, em resenha publicada na revista Questions de communication. A energia do pensamento e da escrita, cuja posição é tomada a partir do ponto de vista do exilado, em Brecht, Didi-Huberman assim contextualiza: “[…] É, em todo caso, a partir de sua situação de exílio que inúmeros artistas, escritores ou pensadores tentaram compreender – até mesmo responder – a nova configuração histórica que lhes foi duramente imposta desde o início dos anos 1930. O caso de Bertold Brecht surge, sob esse aspecto, como exemplar: seu exílio começa em 28 de fevereiro de 1933, imediatamente após o incêndio de Reichstag. A partir desse momento, ele erra de Praga a Paris e de Londres a Moscou; estabelece-se em Svendborg, na Dinamarca; passa por Estocolmo; atinge a Finlândia; reparte para leningrado, Moscou e Vladivostok; fixa-se em Los Angeles; detém-se em Nova York; deixa os Estados Unidos no dia seguinte a seu depoimento diante da Comissão de Inquérito sobre as Atividades Antiamericanas; chega a Zurique antes de encontrar-se definitivamente em Berlim. Ele não voltará à Alemanha antes de 1948; terá, então, passado 15 anos de sua vida ‘sem teatro, muitas vezes sem dinheiro, vivendo em países cuja língua não era a sua’, entre o acolhimento e a hostilidade, sobretudo a dos processos macartistas que teve de enfrentar na América”. O dramaturgo, a despeito dessas dificuldades e mesmo de “suas tragédias cotidianas”, como pontua o filósofo, “chegou a fazer de sua situação de exílio uma ‘posição’, e desta um ‘trabalho’ de escritura, de pensamento, apesar de tudo. Uma heurística da história que ele atravessava: a guerra e sua incerteza quanto ao futuro. Exposto à guerra, […] Brecht praticou uma aproximação da guerra, uma ‘exposição da guerra’, que foi ao mesmo tempo um saber, uma tomada de posição e um conjunto de opções estéticas absolutamente determinantes”. Didi-Huberman nota a posição forçada do escritor em exílio, que, sempre na iminência de fugir, escreve pequenas formas líricas, “crônicas”, “baladas”, “sátiras”, ou mesmo “canções infantis”; segundo o filósofo, “tratava-se, por toda parte, nessas formas passageiras ou cíclicas, de tomar posição e de saber como está a situação nos arredores, situação militar, política e histórica. Enquanto as posições brechtianas parecem hoje, mais que nunca, ‘fora de moda’, convém observar a que ponto elas foram conformes às de Walter Benjamin, interlocutor privilegiado, que reconhecia em Brecht o exemplo característico de uma ‘escritura de exílio’, capaz de manter sua exigências formais ao intervir diretamente no terreno das análises e tomadas de posição políticas. Mesmo quando ela se dá no terreno do humour, a escritura brechtiana do exílio não deixa nunca de suscitar uma reflexão sobre o mundo contemporâneo, por exemplo, neste pequeno fragmento de Dialogues d’exilés: ‘O passaporte é a parte mais nobre no homem. Aliás, um passaporte não se fabrica tão simplesmente como um homem. Pode-se fazer um homem não importa onde, da maneira mais irrefletida do mundo e sem motivo razoável; um passaporte, nunca’”.

A obra é marcada pelas tão características quanto instigantes referências de Didi-Huberman a Aby Warburg e Walter Benjamin, sobretudo à compreensão de ambos acerca da história, como lugar de sobrevivências. Para o autor: “A montagem será precisamente uma das respostas fundamentais para esse problema de construção da historicidade. Porque não está orientada simplesmente, a montagem escapa das teleologias, torna visíveis as sobrevivências, os anacronismos, os encontros de temporalidades contraditórias que afetam cada objeto, cada acontecimento, cada pessoa, cada gesto. Então, o historiador renuncia a contar ‘uma história’, mas, ao fazê-lo, consegue mostrar que a história não é senão todas as complexidades do tempo, todos os estratos da arqueologia, todos os pontilhados do destino”. Cada imagem traz consigo uma carga energética, potencial, a partir da qual pode-se questionar o modelo de história como narrativa linear e contínua, instaurando, com o faz uma montagem de imagens, em lugar de um encadeamento causal de acontecimentos, a concepção de “saltos” históricos, constelações.

Em entrevista, concedida a Vera Casa Nova, professora da UFMG, questionado quanto à exposição “Levantes”, da qual foi curador, ser a continuação de sua exposição anterior, sobre a lamentação, na qual mostrava-se que os povos em prantos tornam-se povos armados, Didi-Huberman diz: “O trabalho sobre a lamentação vem de uma série de livros que intitulei ‘O olho da história’ e cujo primeiro volume Como as imagens tomam posição apresenta Bertold Brecht e Walter Benjamin. Eu já estava muito próximo da questão. Depois a exposição ‘Atlas’, no Museu Rainha Sofia de Madrid, foi uma etapa muito importante. Eu me debrucei, tanto sobre o domínio das ciências humanas quanto no da arte, sobre uma forma de saber imaginativo. Atlas é um titã que se revolta contra a autoridade dos deuses do Olimpo. Sua revolta fracassa. Ele foi punido com seu irmão Prometeu. Condenado a sustentar a esfera terrestre. Suas revoltas fracassaram, com exceção de Prometeu que verdadeiramente transmitiu o fogo aos homens e Atlas o saber das estrelas, logo o das revoluções.

“O que me interessa dessa parábola, é que através de seus inumeráveis fracassos, há sempre alguma coisa das revoltas que sobrevive e se transmite. Desde que me aproximei dos pensamentos de Freud, Benjamin e sobretudo de Aby Warburg, o que me interessa é a potência política como ela se transmite, como sobrevive. Então, em termos de exposição, ‘Levantes’ é a continuação de ‘Atlas’ e das ‘Histórias de fantasmas para gente grande’. E, em termos de pesquisa, da série de livros ‘O olho da história’ que termina com Eisenstein, esse grande pensador da energia revolucionária, enquanto essa energia necessita da memória (o que Stalin não queria compreender, evidentemente)”.

Na mesma entrevista, questionado sobre o olhar contemporâneo ser determinado pelos meios de comunicação de massa, “condicionado para produzir determinadas cegueiras e determinadas visibilidades e determinados clichês do olhar”, Didi-Huberman disse: “Há um filósofo de que gosto muito, que se chama Gilles Deleuze, e ele disse uma coisa que adoro: não vivemos numa civilização da imagem – isso não é verdade –, vivemos numa civilização dos clichês. E nosso trabalho é olhar imagens ou criar imagens que desconstruam os clichês. Por isso, interessa-me colocar em relação as imagens entre si através de um recurso constante à ideia da montagem. O importante é colocar em relação as imagens, porque elas não falam de forma isolada”.

O “diário de trabalho” de Brecht, é exemplar, pois, diz o filósofo, “põe em jogo outra coisa: ele não cessa de confrontar as histórias de um sujeito (histórias minúsculas, afinal) com a história do mundo inteiro (a história com H maiúsculo). Enfoca, de imediato, como muitas outras obras de Brecht, o problema da historicidade, no horizonte de toda questão de atualidade. Mas não deixa de romper com a estrita cronologia, por meio de uma rede de anacronismos tirados de suas próprias montagens ou construções de hipóteses. Ele pertence, sobretudo, a esse gênero essencialmente moderno que poderíamos chamar ‘diário do pensamento’, que encontramos em Nietzsche, Aby Warburg, Hofmannsthal, Karl Kraus, Franz Kafka, Hermann Broch, Ludwing Wittgenstein ou então Robert Musil, à espera de Hannah Arendt, por exemplo. Esse tipo de diário se parece menos com uma crônica dos dias que passam – com sua cota de histórias e de sensações concomitantes – do que com um ateliê provisoriamente em desordem, ou com uma sala de montagem na qual se fomenta e se reflete não menos que a obra toda de um escritor”.

O título, O olho da história, para Etienne Samain, professor da Unicamp, é “uma clara referência a Georges Bataille e ao seu inquietante livro História do olho. Samain, no artigo “Antropologia, imagens e arte. Um percurso reflexivo a partir de Georges Didi-Huberman”, publicado nos Cadernos de Arte e Antropologia, aponta que acompanhar a arqueologia das imagens de Didi-Huberman requer “não apenas ‘pensar a imagem’ e, sim, ‘pensar por imagens’, isto é, aprender a ‘abrir’, a ‘desdobrar’ as imagens, para, nelas, redescobrir, numa perspectiva aberta por Walter Benjamin, seus profundos e verdadeiros valores de uso (de utilização, de projeto) para o nosso século, em especial nesta virada cognitiva e comunicacional da qual participamos. O antropólogo, o cientista social, é alguém que não deve apenas ficar ocupado (preocupado) pela descrição, ilustração, registro, pela documentação da história presente dos homens e das culturas; é alguém que, ao realizar todas ou parte dessas tarefas, deve permanecer ocupado (preocupado) em ‘entender as pulsões e os sofrimentos do mundo, de transformá-los, de remontá-los em uma forma explicativa implicativa e alternativa’ (Didi-Huberman, Remontages du temps subi. L’oeil de l’Histoire, 2. Paris: Editions de Minuit, 2010:191)”.

Márcio Fransen Pereira, em sua Dissertação de Mestrado, “Bertolt Brecht: utopia e imagem. Uma narrativa do exílio”, defendida na UFRGS em 2014, comenta: “Passando por diferentes produções de artistas em seus livros, Didi-Huberman chega a Brecht com uma escrita que mistura leveza e precisão, cadenciada por uma conceituação que nos parece ser sempre fragmentada. Ali onde procuramos a conclusão de um conceito, Didi-Huberman o marca com uma nova metáfora, uma nova vírgula, que nos leva a repensá-lo. Essas interrupções, no livro Quand les images prennent position (2008), não estão ausentes; nesse trabalho, as metáforas do autor questionam pela primeira vez o ‘olho da história’”

A montagem responde à irresolução, caleidoscópica. É nesse sentido que Didi-Huberman afirma: “O diário brechtiano do exílio será um exercício metódico da liberdade de passagem. No momento em que ele sofre o angustioso ‘tempo do entreguerras’, em 1940, Bertold Brecht se dá o poder do jogo, o poder de fazer relação, o poder do salto, do laço entre níveis de realidade que tudo parece opor. […] Diante dos constrangimentos ligados à sua situação, mas confrontado às exigências intelectuais, éticas e políticas, de tomar posição apesar de tudo, Brecht terá, espontaneamente, seguido o preceito wittgensteiniano, segundo o qual aquilo que não se pode dizer ou demonstrar deve ser mostrado.  Renunciava assim ao valor discursivo, dedutivo ou demonstrativo da exposição – quando expor significa explicar, elucidar, narrar em boa ordem – para desenvolver mais livremente o valor icônico, tabular e mostrativo. Eis porque seu Journal de travail aparece como uma gigantesca montagem de textos dos mais diversos status, e de imagens igualmente heterogêneas que ele recorta e cola, aqui e ali, no corpo ou na corrente de seu pensamento associativo”.

Georges Didi-Huberman é autor de cerca de cinquenta livros e ensaios, nos quais articula filosofia e história da arte. Foi curador, entre outras, da exposição Atlas, como carregar o mundo nas costas? (inspirada no historiador da arte Aby Warburg), produzida pelo Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia de Madri; foi também cocurador da exposição Nouvelles Histoires de Fantômes no Palais de Tokyo de Paris em fevereiro de 2014 com o fotógrafo Arno Gisinger.

No Brasil, entre outros, foram editados os seus seguintes livros: O que vemos, o que nos olha [São Paulo: Editora 34, 1998]; A sobrevivência dos vaga-lumes [Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011]; Diante da imagem [São Paulo: Editora 34, 2014]; A pintura encarnada [São Paulo: Editora 34, 2014]; Diante do tempo. História da arte e anacronismo das imagens [Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015]; Que emoção! Que emoção? [São Paulo: Editora 34, 2016].

 

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.Trecho.

 

Para saber é preciso tomar posição. Gesto nada simples. Tomar posição é situar-se pelo menos duas vezes, em pelo menos duas frentes que toda posição comporta, pois toda posição é, fatalmente, relativa. Trata-se, por exemplo, de afrontar algo; diante disso, todavia, precisamos também contar com tudo aquilo de que nos afastamos, o fora de alcance que existe atrás de nós, que recusamos talvez, mas que, em grande parte, condiciona nosso próprio movimento, logo, nossa posição. Trata-se também de situar-se no presente e visar um futuro. Contudo, tudo isso só existe sobre o fundo de uma temporalidade que nos precede, que nos engloba, chamando por nossa memória até em nossas tentativas de esquecimento, de ruptura, de novidade absoluta. Para saber é preciso saber o que se quer; porém, é preciso, também, saber onde se situa nosso não saber, nossos medos latentes, nossos desejos inconscientes. Para saber é preciso, então, contar com duas resistências pelo menos, duas significações da palavra “resistência”: a que afirma nossa vontade filosófica ou política de quebrar as barreiras de opinião (é a resistência que diz “não” a isso, “sim” àquilo), mas também a que afirma nossa propensão psíquica em erguer outras barreiras no acesso sempre perigoso ao sentido profundo de nosso desejo de saber (é a resistência que não sabe mais muito bem em que ela consente nem a que quer renunciar).

Para saber é preciso, pois, manter-se em dois espaços e em duas temporalidades ao mesmo tempo. É preciso “implicar-se”, aceitar entrar, afrontar, ir ao coração, não bordejar, decidir. É preciso também – porque o ato de decidir acarreta isso – “afastar-se” violentamente do conflito, ou então ligeiramente, como o pintor quando se afasta de sua tela para saber em que ponto está seu trabalho. Não se sabe nada na imersão pura, no “em si”, no terreno do “perto demais”. Para saber é preciso tomar posição, o que supõe mover-se, e constantemente assumir a responsabilidade de tal movimento. Esse movimento é tanto “aproximação” quanto “afastamento”: aproximação com reserva, afastamento com desejo. Ele supõe um contato, mas o supõe interrompido, se não for quebrado, perdido, impossível ao extremo.

[…]

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QUANDO AS IMAGENS TOMAM POSIÇÃO – O OLHO DA HISTÓRIA – VOL. I

Autor: Georges Didi-Huberman
Editora: Editora UFMG
Preço: R$ 48,00 (279 págs.)

 

 

 

 

 

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