Resenhas

A caminhada como transformação (Parte II)

28 outubro, 2020 | Por Tânia Gomes Mendonça

Uma reflexão sobre Andar por aí, de Isabel Minhós Martins e Madalena Matoso

Tânia Gomes Mendonça

 

Ao abrirmos o livro Andar por aí, de Isabel Minhós Martins e ilustrações de Madalena Matoso, nos deparamos com um enorme pássaro amarelo, cuja asa é um parque com um gramado verde e um banco vermelho. O seu corpo possui tracejados que revelam prédios, ruas, carros, casas, um rio e um mercado. O pássaro é, afinal, um mapa. Uma ave que, talvez, quem sabe, possa alçar vôo durante a nossa leitura…

Gosto de andar por aí.
Desço as escadas a correr, salto os degraus dois a dois
e num instante entro na rua.
Na rua não há teto. Sopra o vento.
Às vezes chove, às vezes faz sol.
Na rua não há paredes. Há estradas, muros e lugares,
mas o mundo é enorme (acho que não tem fim).

Assim é o texto da primeira página do livro. Nela, vemos um senhor idoso e um menino, que caminham por entre tracejados com cores chapadas – as mesmas do pássaro, que provavelmente, já se encontra vagando pelo céu do leitor. E a ilustração, com suas marcas de possíveis pegadas e passeios, parece nos convidar a atravessar a experiência deste livro ilustrado.

O menino, então, que narra o livro em primeira pessoa, revela um hábito que divide com o avô: andar por aí, sem fazer “nada de especial”. Desse modo, o garoto apresenta como se veste para estas vivências, conforme a estação do ano. Nesta atividade freqüente, vemos o tempo passar. Em seguida, ele revela o que costuma fazer para se divertir durante estas caminhadas: diferentes tamanhos de passos, enumeração de elementos como ônibus e automóveis, equilibrismos, a sensação de pisar em distintas matérias, sentir texturas, riscar o chão. Observar, observar e observar. São diversas aventuras, que acontecem na trivialidade de um passeio corriqueiro, o qual poderia ser, simplesmente, um ato de deslocar os pés ao longo de um trajeto.

Mas, não: trata-se de caminhar devagarinho, “vendo tudo, distraído”. Ter tempo para contemplar. O menino diz: “O meu avô tem sempre tempo/ e ter tempo é muito bom”.
Tempo e ócio: duas palavras que, na contemporaneidade, soam como uma subversão. Afinal, caminhar em meio à multidão de forma a observar o que se passa e estabelecer vivências plenas de sentido passa a ser um ato de desobediência à ordem cada vez mais apressada na qual (sobre)vivemos.

O livro Andar por aí, com esta concepção de que caminhar é um ato passível de ser uma verdadeira experiência, pode nos remeter à ideia do flâneur do século XIX – um sujeito que caminhava pelas ruas de Paris, de maneira contemplativa, experimentando um novo olhar sobre a cidade cosmopolita.

O filósofo alemão Walter Benjamin, já no século XX, dedicou-se a escrever algumas páginas sobre estes sujeitos contemplativos:

Uma embriaguez acomete aquele que longamente vagou sem rumo pelas ruas. A cada passo, o andar ganha uma potência crescente; sempre menor se torna a sedução das lojas, dos bistrôs, das mulheres sorridentes e sempre mais irresistível o magnetismo da próxima esquina, de uma massa de folhas distantes, de um nome de rua. Então vem a fome. Mas ele não quer saber das mil e uma maneiras de aplacá-la. Como um animal ascético, vagueia através de bairros desconhecidos até que, no mais profundo esgotamento, afunda em seu quarto, que o recebe estranho e frio.

(Walter Benjamin. “O Flâneur”. In: Obras escolhidas III. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo [S.Paulo, 1989], p. 186)

Trata-se, desse modo, de observar uma caminhada como um ato de criação, de experiência estética. Tornar-se receptivo a uma vivência por meio de uma atividade trivial de atravessar a cidade.

Nos dias de hoje, a caminhada tornou-se, ainda, um forte componente em determinados processos artísticos da arte contemporânea. Edith Derdyk, por exemplo, é uma artista que trabalha também a partir deste procedimento. Em matéria para a Revista e, do Sesc SP, ela comenta:

A compreensão da caminhada como matéria poética – assunto recente na paisagem da arte contemporânea – abriu espaço para escaparmos da compreensão do corpo apenas em sua dimensão funcional e pragmática no dia a dia, já que o ato de caminhar é uma experiência atávica presente tanto no percurso da civilização como no de nossas vidas pessoais. Afinal, desde o nascimento até a morte, todos nós caminhamos – seja no plano físico ou existencial, em todas as metáforas possíveis!

(Edith Derdyk. “A arte de caminhar”. In: Revista e online. (SESC-SP). 29/11/2016)

Depois de estabelecer estes trajetos pelos quais nosso olhar pode atravessar, retornemos ao livro Andar por aí. Trata-se, aqui, de uma história construída por meio de um narrador que é uma criança e cujo público leitor é, sobretudo, da mesma faixa etária.
A caminhada enquanto experiência estética de subversão à ordem produtivista na qual vivemos parece ser, portanto, neste livro, uma atividade comum para grande parte das crianças, que enxergam o instante como uma oportunidade de vida plena. A infância seria, assim, uma possibilidade de metamorfose destes caminhos muitas vezes mecânicos pelos quais passamos todos os dias, vazios de experiência e de sentido. O livro, desse modo, convida o leitor a refletir sobre a infância enquanto um novo horizonte para aquilo que conforma o seu dia a dia. Um horizonte que é, ao mesmo tempo, inédito e antigo, uma vez que a sua novidade sempre se renova, assim como cada criança que chega ao mundo.

Desse modo, é semelhante, voltando à Parte I do texto “A caminhada como transformação”, ao caminho dos “homens e mulheres verdadeiros”, presente no livro Relatos de El Viejo Antonio, do Subcomandante Marcos, os quais estão sempre buscando o princípio, a fim de chegar ao final do trajeto, mas nunca o encontram, pois se trata de ser sempre um caminho sem fim, que procura ser cada vez melhor.

Nesse sentido, a proposta de criação de um “caminho infantil” do livro Andar por aí ressalta, também, a ideia de um trajeto que se estabelece como processo, no qual o fundamental é o “entre”, e não o início ou o final. E esta infância enquanto caminhada plena de sentido pode ser uma perspectiva transformadora tanto para as crianças como para os adultos.

 

 

 

ANDAR POR AÍ

 

Autor: Isabel Minhós Martins
Ilustradora: Madalena Matoso
Editora: 34
(32 págs.)

 

 

 

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