Mas V. é um mau correspondente. Não envia cartas. Tenho de resignar-me a continuar no escuro. Eu sou o contrário. Sem ter tempo de escrever, escrevo demais e escrevo pelo prazer de receber a resposta. E pelo amor à correspondência, essa forma literária que hoje em dia me satisfaz.
– Carta de Alceu Amoroso Lima a Drummond, 1° de fevereiro de 1929.
Trocada ao longo de cinco décadas, a correspondência entre o poeta Carlos Drummond e o intelectual Alceu Amoroso Lima é verdadeiro testemunho do amadurecimento de ambos interlocutores. São diálogos interessantíssimos, sobre questões estéticas, políticas e religiosas, que, ainda que inscritas nas suas experiências individuais, oferecem fundamento para a compreensão de toda a literatura e cultura modernas brasileiras.
As 132 cartas inéditas reunidas no volume Correspondência de Carlos Drummond de Andrade com Alceu Amoroso Lima, publicado pela editora da UFMG, foram selecionadas e organizadas pelo professor Leandro Garcia Rodrigues.
O professor vem há anos especializando-se no estudo da obra de Alceu, mais conhecido por seu pseudônimo: Tristão de Ataíde. Segundo Garcia Rodrigues, foi “um dos mais sagazes críticos literários que o país já teve”.
Alceu Amoroso Lima foi um dos maiores intelectuais brasileiros católicos do século XX. As reflexões trocadas com Drummond sobre religião são profundamente instigantes e mesmo consideradas pontos dos mais relevantes da correspondência. Numa das cartas, Alceu diz: “[…] E no mais, a Fé é também uma ferida. É mesmo a maior das feridas humanas. Pois bem, a Fé é uma ferida quase crônica. Creia, é sentir toda a falta do mundo em torno de si, se bem que será também sentir o equilíbrio profundo em tudo”. Ao que, um mês depois, Drummond responde-lhe:
“Caro Tristão
Sou-lhe muito grato pela sua bela e generosa carta, que guardo com carinho entre os meus papéis. Só um trecho dela é que me perturbou: aquele em que você dá a entender que não encontrou a paz na religião, porque a paz não é deste mundo. Mas então não sei o que se deva procurar na religião. Se ela não é uma paz máxima e consoladora, uma dissolução de todos os ímpetos, revoltas, inquietações, não seria preferível continuar do lado de cá, sem nenhuma certeza superior e sem nenhuma esperança?”
Segundo o organizador do livro, os principais assuntos “tratados são crises de fé, crises existenciais, dúvidas em relação à vida, lançamento de livros, a produção intelectual de cada um e a forte amizade que os unia. São cartas importantes, pois trazem um novo olhar sobre o modernismo brasileiro, especialmente sobre a biografia de cada um dos correspondentes, já que ambos ‘se revelaram’ aos extremos ao longo dessas cartas”.
O livro traz a lume, assim, um lado menos conhecido de Drummond, mostrando como na juventude sentiu-se dividido entre a formação católica e um ceticismo profundo. A primeira carta remetida a Alceu, que então já era crítico renomado e consagrado e que havia convertido-se ao catolicismo um ano antes, já confessava a aflição cética, ao dizer-lhe: “Sou dos maus, dos piores católicos que há por aí. Talvez seja uma crise da mocidade, não sei, entretanto sinto pouca disposição para crer, e um contato extremamente doloroso que tive com os jesuítas me afastou ainda mais da religião”.
Alceu Amoroso Lima se converteu ao catolicismo em 1928, aos 35 anos, após ter travado um longo, intenso e profundo debate com Jackson de Figueiredo, fundador do Centro Dom Vital e da revista “A Ordem”. De acordo com Garcia Rodrigues, até aquele momento o crítico dizia abertamente ter apenas entrado em igrejas duas vezes em sua vida, para ser batizado e para se casar. Durante sua formação acadêmica, na Faculdade de Direito, havia sido aluno atento de Silvio Romero, notório intelectual ateu de então.
O início da amizade epistolar é assim marcado:
“Prezado Tristão de Ataíde.
Foi com alegria que recebi o 1º número da Ordem sob sua direção. Ele veio me proporcionar ensejo de lhe escrever algumas palavras de afeto e admiração, que inexplicavelmente não lhe mandei em tempo, quando me ofereceu a 1ª série dos Estudos. Oferecimento que me encheu de satisfação e me penhorou deveras, acredite. Entretanto, nunca lhe mandei sequer um muito obrigado. Seria uma ingratidão se não fosse apenas uma prova a mais da minha irremediável incapacidade epistolar”.
Drummond tinha então 26 anos, e Alceu Amoroso Lima já era o principal crítico literário do modernismo brasileiro, assinando seus textos publicados na imprensa sob o pseudônimo.
O organizador do livro, em artigo, publicado na plataforma virtual do Centro Dom Vital, conta: “O início desta amizade não foi de forma pessoal, ao vivo, frente à frente um do outro, mas à distância, conhecendo-se ambos apenas pela imprensa, pela publicação de obras e pela interseção de amigos em comum, especialmente Mário de Andrade, correspondente assíduo tanto de Drummond quanto de Alceu”.
Segundo Garcia Rodrigues, “nos últimos anos, temos percebido uma enorme quantidade de publicações e pesquisas envolvendo a Epistolografia, quase nos forçando a pensar numa nova área dentro dos Estudos Literários: a Crítica Epistolográfica”. Sobre a correspondência entre Drummond e Alceu, ele analisa: “Foram dois missivistas de peso: um grande escritor e um grande crítico literário. Duas personalidades essenciais para se compreender a cultura literária brasileira do século XX, marcada pela diversidade ideológica, temática e estilística. Dois intelectuais de pensamento e práxis inteiramente diferentes que refletem a própria heterogeneidade do nosso movimento modernista, marcado por sintomáticas rachaduras e fragmentações”.
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Trechos:
Rio, 8 de setembro de 1945.
Meu caro Alceu:
Aqui está, com dedicatória amiga e para mim tão grata, a “Estética Literária”, livro tão rico de ideias como próprio a suscitar outras, e em que é fácil verificar a madura experiência do crítico depois de um alongado convívio com os livros. Embora discordando de muitas das suas afirmações, não posso deixar de admirar o conjunto do seu livro, que representa algo de novo em nossa mofina e instintiva arte literária. Você deu aos novos um instrumento de trabalho e meditação. Escreveu uma obra indispensável. Com o meu afetuoso muito obrigado, também um abraço do
Carlos Drummond
Rio – 20 – Março -1946
Meu caro Carlos
Não preciso dizer-lhe a alegria que me deu sua carta. Meu livro encontrou em você o que eu mais desejaria. Um julgamento de valor moral, de uma alma que eu respeito, não apenas como um grande poeta, um dos mais autênticos em toda a nossa história literária, mas como um grande coração e um caráter intangível. Todas as nossas divergências são acidentais em face de tal fraternidade. […]
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CORRESPONDÊNCIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE COM ALCEU AMOROSO LIMA
Autor: Leandro Garcia Rodrigues
Editora: UFMG
Preço: R$ 55,00 (278 págs.)