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Alices

10 junho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“[…] se falássemos somente quando alguém nos fala, nunca ninguém diria nada”.

desenho de Odilon Redon

desenho de Odilon Redon

Alice no País das Maravilhas e Alice através do espelho, de Lewis Carroll, são livros infantis ou são livros para adultos? A discussão é decorrência das múltiplas formas de interpretações do non-sense de sua prosa, construída como uma trama de proposições absurdas que se apresentam como possibilidades plausíveis.

A editora Cosac Naify acaba de lançar uma edição caprichosa das duas obras, traduzidas por Alexandre Barbosa de Souza e Nicolau Sevcenko. Além de atravessar com a menina Alice o país maravilhoso, é possível continuar a jornada por um novo mundo, através do espelho.

Lewis Carroll – pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson, notório professor de matemática e lógica da Universidade de Oxford, além de também fotógrafo – é considerado o maior representante da literatura non-sense, comumente associada também ao poeta Edward Lear. Sobre Carroll, ou melhor, sobre Dodgson, Virginia Woolf, em ensaio escrito em 1939, incluso na edição e divulgado pelo jornal O Globo, diz: “[…] o Reverendo C. L. Dodgson não teve vida. Passou pelo mundo tão suavemente que não deixou rastros impressos. Mesclou-se tão passivamente em Oxford que é invisível. Acatou todas as convenções; foi pudico, perfunctório, pio e jocoso. Se existiu uma essência dos professores de Oxford do século XIX, ele foi essa essência. Era tão bom que suas irmãs o idolatravam; tão puro que seu sobrinho não tem nada a dizer contra ele. Simplesmente é possível, ele sugere, que “uma sombra de desapontamento paire sobre a vida de Lewis Carroll”. O senhor Dodgson nega imediatamente essa sombra. “Minha vida”, ele diz, “foi isenta de provações e privações”. Porém essa água-viva sem um pingo de tinta continha dentro de si um cristal de perfeita dureza. Que continha infância. O que é algo muito estranho, pois a infância normalmente se apaga lentamente”. Virginia Woolf define, em sua bela análise: “Por algum motivo, não sabemos qual, sua infância foi interrompida abruptamente. Ele a alojava inteira como um todo dentro de si. Não podia deixá-la se dispersar. E assim, conforme ele foi envelhecendo, esse impedimento no centro de seu ser, esse bloco duro de pura infância, privou o homem maduro de alimento. Ele se esgueirou através do mundo adulto feito uma sombra, solidificada apenas na praia de Eastbourne, com garotinhas cujos vestidos ele prendia com alfinetes de segurança. Mas como a infância permaneceu dentro dele inteiriça, ele foi capaz de fazer o que ninguém pôde fazer — ele foi capaz de voltar para aquele mundo; foi capaz de recriá-lo, de modo que nós também voltássemos a ser crianças”.

Sobre a questão da literatura non-sense ser para crianças, mas não somente para crianças, Dirce Waltrick Amarante, professora da UFSC, em artigo, retoma a poeta Cecília Meireles, que para referir-se aos dois Alices, afirmou: “os que, como Rousseau, julgam que a clareza é qualidade indispensável a um livro infantil – essa clareza de certas histórias que não confiam na visão poética das crianças – ficarão surpreendidos com o interesse […] por um livro sob certos aspectos tão obscuro como se o autor escrevesse para adultos – e apenas certos adultos”. Para Meireles, “nesse reino obscuro palpita uma claridade secreta: aquele radioso mistério que a criatura humana, desde o nascimento, pressente consigo, e conserva num zeloso silêncio. Depois é que a vida embrutece. Depois é que o mundo, as circunstâncias, as transigências tiram a alguns essa presciência que, na verdade, parece platônica recordação de sabedoria”. Dirce Amarante cita também a estudiosa Elizabeth Sewell, para quem “o nonsense é um jogo no qual as forças da ordem, na mente, disputam com as forças da desordem, de modo que elas possam ficar em suspenso. […] em razão dessa tensão entre a presença e a ausência de significado, qualquer sugestão de emoção é simultaneamente afastada, assim a perplexidade é tudo o que permanece”. Segundo Amarante, fora “dos sonhos e das anedotas, a palavra-valise, o trocadilho (e também as palavras de caráter apenas melodioso) sempre foram relegados a uma área periférica da comunicação, existindo principalmente na forma de impropriedades no discurso diário, na linguagem das pessoas incultas, das crianças e dos idiotas ou em versos sem sentido da poesia nonsense. A partir de Carroll, Lear e do escritor irlandês James Joyce, porém, esses procedimentos foram alçados também à condição de importantes recursos estilísticos da literatura. Recursos esses que, como se viu, têm sua origem na experiência do uso da língua na infância”.

O crítico Davi Arrigucci Jr., no artigo comenta: “Não me parece boa política, quando se quer valorizar as Alices de Lewis Carroll, encara-las como leitura para adultos. Também não seria conveniente inverter o equívoco e vê-las como leitura para crianças. Esticar e encolher são possibilidades nada desprezíveis de Alice. Grandes e pequenos compreenderão seu significado em dimensões diversas”. Arrigucci, porém, indica que “não concorda com este ponto de vista Sebastião Uchoa Leite, autor da primeira tradução completa dessas duas obras famosas com que o quase reverendo Dodgson inseminou a literatura moderna. Antes desta bonita edição, tínhamos apenas traduções fragmentárias,algumas admiráveis como as de Augusto de Campos, em parte aproveitadas aqui. Ou então, adaptações para crianças. Foi um pouco escaldado por estas que Sebastião imaginou sua nova versão do gato de Cheshire para adultos. E provavelmente ainda por isso tenha tentado resguardá-la com um estudo de abertura. Nele, a erudição um tanto solene e avessa à graça do título (“O que a Tartaruga Disse a Lewis Carroll”) funciona como um exorcismo das maravilhas que professoras zelosas costumam conceder à nossa infância. Temo, porem, que o antídoto não tenha sido bastante venenoso”. Para Arrigucci, a “dificuldade fundamental da crítica diante das Alices é conseguir a perspectiva adequada para uma visada abrangente,uma interpretação realmente inclusiva, capaz de dar conta dos múltiplos aspectos do texto sem mutilar sua relativa autonomia de obra literária”.

Arrigucci aponta ainda que a “infância, o jogo e a linguagem são, pois, três marcos essenciais do mundo poético de Carroll, mas nenhum deles é em si suficiente para compreendê-lo”. Inspirado pelos jogos de linguagem e de sentido das Alices, o filósofo Gilles Deleuze desenvolveu sua Lógica do Sentido. Deleuze retoma a personagem Humpty Dumpty, que, segundo ele, diz: “Quando emprego uma palavra, ela significa o que eu quero que ela signifique, nem mais nem menos […]. A questão é saber quem é o senhor e isso é tudo”. Para Deleuze, quando “designo alguma coisa, suponho sempre que o sentido é compreendido e já está presente […] instalamo-nos logo ‘de saída’ em pleno sentido. O sentido é como a esfera em que estou instalado para operar as designações possíveis e mesmo pensar suas condições. […] nunca digo o sentido daquilo que digo. Mas em compensação, posso sempre tomar o sentido do que digo como objeto de uma outra preposição, da qual, por sua vez, não digo o sentido. Entro então numa regressão infinita do pressuposto”.

Alice através do espelho é ilustrado pela artista Rosângela Rennó e a edição especial, antes esgotada, de Alice no País das Maravilhas, tem ilustrações de Luiz Zerbini, um “deslumbramento para os olhos”, conforme o texto de quarta capa de Ana Maria Machado.

alice

 

 

CAIXA ALICE + ALICE [ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS E ALICE ATRAVÉS DO ESPELHO]

Autor: Lewis Carroll
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 97,93 (376 págs.)

 

 

 

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