“El olvido está lleno de memória” – Mario Benedetti.
O romance Andaimes, do grande escritor uruguaio Mario Benedetti (1920-2009), acaba de ser lançado no Brasil pela editora Mundaréu, com tradução de Mario Damato.
Com uma prosa em tom bastante pessoal, o romance trata do retorno do protagonista, Javier, ao Uruguai, seu país natal, depois de anos de exílio político na Espanha. Os andaimes, que dão título à obra, metaforizam as construções graduais de história e memória que Javier articula neste retorno, ao longo de conversas, de desencontros, de cartas, notícias e reflexões, através dos quais paulatinamente percebe as mudanças transcorridas na situação econômica e a política uruguaia, bem como as mudanças passadas por amigos e companheiros de luta. Os andaimes levam o romance às alturas de perguntas reticentes, sobretudo porque feitas por um “desexilado”: o que resta de um país, de um sonho, de tantos afetos?
A imagem dos andaimes também simboliza a própria obra em construção, uma vez que os capítulos aparecem independentes, soltos, quase como pequenos contos que perfazem-se a partir de um jogo poético. Cada pequeno capítulo é um andaime, uma construção improvisada, provisória; metáfora humana, mas também profundamente política. Segundo o autor, a democracia, sobretudo em um país com histórica recente de ditadura militar, é um processo em construção contínua, um edifício que jamais estará terminado.
O livro foi lançado originalmente em 1997. Por ocasião do lançamento, Alzira Brum Lemos, em artigo escrito para o jornal Folha de São Paulo, entrevistou o autor, para quem o exílio “é um tema recorrente na literatura e não está superado. No que diz respeito ao Uruguai, um país de 3 milhões de habitantes dos quais 1 milhão, por um motivo ou por outro, experimentou o exílio, é uma questão vital. Além disso o exílio econômico e político segue ocorrendo em todas as partes do mundo”. Na mesma entrevista, o autor comentou a referência do título a um processo de desconstrução e de reconstrução dos projetos de toda uma geração: “É uma metáfora que alude à estrutura provisória. A democracia uruguaia foi destruída e agora precisa de andaimes. A democracia é um regime em construção cujo edifício jamais está terminado. Esse romance é feito de pequenas contribuições que pretendem ajudar nessa reconstrução”. Sobre o “desexílio”, neologismo criado em suas crônicas jornalísticas, Benedetti diz: “O desexilado se enfrenta com seu país pessoal, com o país próprio de antes, com o país próprio de agora. Mais que se enfrentar a um conglomerado social ou a um país oficial e oficioso, ele se dedica a buscar seus pontos de vista e pautas de referência privados. Aqui e ali vai comprovando a validade ou invalidade de sua saudade como forma rudimentar de verificar até onde seu país é o mesmo de quando partiu”.
O próprio autor também foi exilado do Uruguai, mas recusa o caráter autobiográfico da obra, conforme pontuou em outra entrevista, concedida à revista espanhola Babac: “Ambos somos desexilados. A biografia de Javier não tem muito a ver comigo. Não é um romance autobiográfico, mas com traços comuns que não são apenas de Javier e meus, mas de quase todos os que voltaram ao país. As surpresas, as mudanças de estilo das pessoas, as marcas deixadas pela ditadura. É algo visto por todos, mas com diferentes reações”.
Neiva Fernandes, professora da UNIJUI, no artigo “Identidade e memória em Andamios de Mario Benedetti”, discute a (re)construção do “eu” através da memória, na medida em que esta desempenha um papel tanto no resgate de um “si mesmo” quanto no desenvolvimento do “vir a ser” como sujeito social. Segundo ela, o protagonista, ao retornar a Montevidéu após o exílio, “depara-se com um país que já não é mais o mesmo, nem no espaço geográfico — como não poderia deixar de ser —, nem no âmbito social, posto que a máquina repressora empenhou-se em manter silenciada uma identidade coletiva por meio de uma desmemória pretendida como voluntária, induzida, a princípio, pela ditadura e, depois, por uma memória seletiva levada a cabo pelo governo de Julio María Sanguinetti, cujo discurso convida os uruguaios ao esquecimento total. […] Nas palavras de Benedetti, ‘el olvido está lleno de memória’ e, nesse caso, acrescento que quem esquece seu passado está, de uma certa forma, condenado a revivê-lo em outras esferas”. Segundo Fernandes, “esta é uma história que narra o exílio e o desexílio de alguém que procura resgatar seus papéis sociais por meio da rememorização, e, conseqüentemente, retomar suas identidades”. Trata-se, conforme aponta a professora, de um olhar que, como o Angelus Novus de Klee, “volta-se para o passado, para a catástrofe desencadeada durante a ditadura, mas de uma certa forma o impulsiona a olhar para a frente, a um futuro”, que se dispõe a enfrentar, graças à inquietude criada pelo embate político entre identidade social e memória, que é capaz de de gerar reações e recriações: “Participar dessa inquietude não deixa de ser uma maneira que Mario Benedetti encontrou para reafirmar seu comprometimento social com a América Latina”.
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.Trecho.
ANDAIME PRELIMINAR
Até agora meus romances tinham nascido sem introito, mas ocorre que não estou muito seguro de que este livro seja um romance propriamente dito (ou propriamente escrito). Melhor o vejo como um sistema ou coleção de andaimes. O Diccionario de la Lengua Española (Real Academia Española, Madri, 1992) inclui entre outras a seguinte definição de andaime: “Armação de tablados ou vigas postos horizontalmente e sustentados em pés direitos ou pontes, ou de outra maneira, que serve para se subir nela ao trabalhar na construção ou reparação de edifícios, pintar paredes ou tetos, levantar ou baixar estátuas ou outras coisas etc. U. t. em sent. fig.” (Agradou-me sobretudo isso das estátuas).
Como poderá comprovar o leitor, caso se anime a empreender sua leitura, este livro trata dos sucessivos encontros e desencontros de um desexilado que, após vários anos de imposta ausência, retorna a sua Montevidéu de origem com um fardo de nostalgias, preconceitos, esperanças e solidões. Apesar de ser eu mesmo um desexilado, advirto que não se trata de uma autobiografia, mas sim de um puzzle de ficção, ordenado segundo a mutação de realidades várias, quase todas alheias ou inventadas, e uma ou outra própria. Por outro lado, de nenhum modo pretende ser uma interpretação psicológica, sociológica nem muito menos antropológica, de uma repatriação mais ou menos coletiva, mas sim algo mais lúdico e flexível: a restauração imaginária de um regresso individual. O desexilado aludido não se enfrenta com um conglomerado social nem um país oficial ou oficioso, mas sim seu país pessoal, esse que levava dentro de si e o aguardava fora de si. Daí o inevitável cotejo do país próprio de antes com o país próprio de agora, do presente que foi com o presente que virá, visto e entrevisto desde o presente que é. O desexilado, ainda que às vezes recorra a menções tangenciais, não se detém em variações políticas ou meteorológicas, cotações da Bolsa de Valores ou resultados futebolísticos, inflações ou deflações, nem sequer em esperanças ou frustrações de um eleitorado flutuante e ainda inseguro; antes, busca seus pontos e pautas particulares de referência, e aqui e ali vai comprovando a validade ou a invalidade de suas saudades, como uma forma rudimentar de verificar até onde e desde quando seu país pessoal mudou e comprovar que tampouco ele é o mesmo de anos atrás. Como bem intuiu Haro Tecglen: “O estado atual da democracia é a imperfeição. Às vezes — muito poucas — alcança a graça; quando os cidadãos dedicados a ela a aceitam como imperfeita e assumem que é um regime em construção contínua cujo edifício jamais estará terminado: um sistema sem final possível”. De acordo. Todo “regime em construção contínua” precisa de andaimes, e mais ainda se “jamais estará terminado”.
Nesse contexto, cada capítulo deste livro pode ou quer ser um andaime, ou seja, um elemento restaurador, às vezes distante dos outros andaimes. Alguns deles sustêm-se (Academia dixit) “em pés direitos [por que não esquerdos?] e pontes” do passado, enquanto outros inauguram novas escoras. Todo ele anotado com a irregularidade e o matraquear de temas e criaturas que convocam a explicável curiosidade ou a tímida emoção do regressado.
Não pense o leitor que aqui lhe empurro de contrabando uma resenha (auto)crítica, nem muito menos uma lenga-lenga de autopromoção. Bem ao contrário. Trata-se de lhe avisar, francamente e desde o vamos, que aqui não vai encontrar uma novela comm’il faut, mas sim, no máximo, uma novela em 75 andaimes. (Como por desgraça soe ocorrer nos suportes de madeira e ferro, desses outros, mais ou menos metafóricos, pode acontecer que algum personagem se precipite em um vazio espiritual.) Pois bem, se os andaimes, reais ou metafóricos, não lhe interessam, aconselho ao leitor que feche este livro e saia em busca de uma novela de verdade, vale dizer, de capa dura.
M.B.
Montevidéu — Buenos Aires
Madri — Puerto Pollensa,
1994-1996
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Autor: Mario Benedetti
Editora: Mundaréu
Preço: R$ 30,80 (248 págs.)