A história de Moçambique, sobretudo sua história mais recente, é marcada por um quadro social complexo e uma grande instabilidade política. O moçambicano Mia Couto resolveu contá-la através da impressionante trilogia As Areias do Imperador. No Brasil, a Companhia das Letras acaba de publicar o primeiro volume, Mulheres de cinzas, notável por unir, à já conhecida prosa lírica do autor, a força do romance histórico.
O romance se passa na época em que o sul de Moçambique era governado por Ngungunyane – conhecido pelos portugueses como Gungunhane –, herói nacional símbolo da resistência contra a colonização européia, último dos líderes do Estado de Gaza, o segundo maior império no continente comandado por um africano.
Em fins do século XIX, o sargento português Germano de Melo foi enviado ao vilarejo de Nkokolani para a batalha contra o imperador que ameaçava o domínio colonial. Lá, o militar conheceu Imani, garota de quinze anos que tornou-se sua intérprete. Ela pertencia à tribo dos VaChopi, uma das poucas que ousou se opor à invasão de Ngungunyane. Em sua família, enquanto um de seus irmãos lutava pela Coroa de Portugal, o outro se unia ao exército dos guerreiros do imperador africano. O envolvimento entre Germano e Imani passa a ser cada vez maior, malgrado todas as diferenças entre seus mundos. Porém, ela sabe que num país assombrado pela guerra dos homens, a única saída para uma mulher é passar despercebida, como se fosse feita de sombras, ou de cinzas.
Mia Couto criou um romance forte, belo e vívido, narrado alternadamente entre a voz da jovem africana e as cartas escritas pelo sargento português.
Toda a trilogia dedica-se à narrativa dos últimos dias do Estado de Gaza, em Moçambique. Ngungunyane foi derrotado em 1895 pelas forças portuguesas comandadas por Mouzinho de Albuquerque, e então deportado para os Açores, onde veio a morrer em 1906, em Angra do Heroísmo; seus restos mortais foram supostamente transladados de volta a Moçambique em 1985, numa cerimônia solene. Diz-se, porém, que o caixão continha senão areia.
Ngungunhana tornou-se uma figura mítica de herói nacional, intuito pelo qual esperava-se unificar o imaginário coletivo, a partir da criação de identidade entre o povo e uma ideia de resistência, unindo sob um mesmo sentimento nacionalista comum as populações locais, culturalmente bastante distintas.
“O passado é só um pretexto, estou a falar do presente, estamos a inventar um tempo nosso, uma nação, em que todos têm cabimento”, disse o escritor. “A minha sepultura não mora no futuro, a minha cova é o meu passado”, pontua, pois os moçambicanos são “ainda prisioneiros de uma versão única do passado”: “Hoje fala-se muito num discurso pluralista em que os moçambicanos se aceitem diversos, mas não teremos um presente com essa diversidade se não soubermos que temos um passado com muitas versões e são todas válidas”.
Autor: Mia Couto
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 27,93 (344 págs.)