Recém lançado no Brasil, Assim começa o mal, do espanhol Javier Marías, é considerado um dos melhores livros do ano. Marías, célebre por sua prosa arrebatadora e capacidade narrativa instigante e atraente, inicia sua história na Madri pós-ditatura franquista do início dos anos 1980, momento em que a capital espanhola fervia.
O título é um verso do Hamlet de Shakespeare, que, tratando do rancor e da vingança, diz que quando começa o mal, o pior fica para trás.
Juan de Vere, rapaz de vinte e três anos, recém-formado, é contratado como secretário particular de Eduardo Muriel, um famoso cineasta. Inscrito, assim, nos meandros da vida particular de Muriel, De Vere torna-se espectador do casamento, misterioso e aparentemente bastante infeliz, entre o cineasta e sua esposa, Beatriz Noguera.
Muriel encarrega o rapaz de investigar um amigo, o dr. Jorge Van Vechten, suspeito de ter cometido atos imorais durante a ditadura franquista.
Figura enigmática e um tanto repulsiva, Van Vechten passa a acompanhar o jovem De Vere em suas excessivas noitadas. Era então o auge, culatra da volta à democracia, da chamada Movida Madrileña, o caldeirão de boemia, drogas, liberalidade sexual e cultura alternativa que tomou conta da cidade.
De Vere, cada vez mais envolvido com a vida particular de Muriel, passa, pouco a pouco, de espectador a personagem: toma então iniciativas questionáveis, com profundas repercussões na vida de todos os envolvidos. Sua atitude irá lhe mostrar, quando vista com a distância dos anos, que não há justiça desinteressada e que qualquer decisão, quer de punição ou de perdão, é no fundo arbitrária. O verso da tragédia shakespeariana ressoa ao longo deste forte romance o diálogo truculento e irresoluto entre o desejo e o rancor.
Como diz Camila Von Holdeferf, em artigo escrito ao jornal Folha de São Paulo, ao longo da narrativa, “além de ações confinadas ao âmbito privado dos personagens, há todo tipo de atrocidades cometidas em nome ou sob o manto dos ideais políticos. […] Como todo livro de Marías, este é lento e reflexivo. Suas orações normalmente sutis e alusivas tendem a deixar muita coisa para a imaginação do leitor. Seu único defeito, no entanto, é a reiteração insistente de algumas cenas. A repetição, todavia, que já é uma marca de Marías, não tira o brilho da narrativa. Assim Começa o Mal é, sem dúvida, um dos livros do ano”.
Em entrevista concedida a Ubiratan Brasil, para o Estado de São Paulo, Javier Marías disse, sobre o título, ao ser questionado a respeito da escolha de uma citação de Shakespeare e sobre acreditar ou não se “o pior fica para trás”:
“Veja bem, é uma coisa curiosa: meus personagens entendem a citação de Shakespeare como ‘Assim começa o mal e o pior espreita atrás’. Entretanto, muitos tradutores (em diferentes línguas) e exegetas entendem a frase justamente ao contrário: ‘Assim começa o mal e o pior espreita por trás’, ou seja, ‘ainda está por vir’. Shakespeare é ambíguo até em frases que parecem simples, numa primeira instância, como esta. E este é um dos seus ensinamentos: quase tudo é misterioso e obscuro, por muito que hoje se acredite que há grande transparência e que se conhece mais do que nunca. Quase tudo é complexo, ambivalente, indeciso. É uma grande lição em um mundo regido cada vez mais pelas simplificações e pelas faltas de nuances e de claros-escuros. Ao contrário, seu mundo e sua obra estão repletos de claros-escuros e de penumbras. E, na minha opinião, o mundo de hoje, apesar de todas as aparências, continua sendo assim, em essência. Eu procuro refleti-lo no que escrevo”.
A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.
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Trecho:
Não faz muito tempo que aquela história aconteceu — menos do que costuma durar uma vida, e quão pouco é uma vida quando ela já está terminada e já se pode contá-la em poucas frases e só ficam na memória cinzas que se soltam à menor sacudida e voam à menor lufada —, e no entanto hoje ela seria impossível. Refiro-me sobretudo ao que aconteceu com eles, com Eduardo Muriel e sua mulher, Beatriz Noguera, quando eram jovens, e não tanto ao que aconteceu comigo e com eles quando eu era jovem e o casamento deles uma longa e indissolúvel desdita. Este último, sim, continuaria sendo possível: o que aconteceu comigo, já que também agora acontece, ou talvez seja a mesma coisa que não termina. E igualmente poderia ser, acredito, o que aconteceu com Van Vechten e outros fatos daquela época. Deve ter havido Van Vechtens em todos os tempos e não cessarão e continuarão existindo, a índole dos personagens não muda nunca, ou assim parece, os da realidade e os da ficção, sua gêmea, se repetem ao longo dos séculos como se as duas esferas carecessem de imaginação ou não tivessem escapatória (ambas obra dos vivos, afinal de contas, talvez entre os mortos haja mais inventividade), às vezes dá a sensação de desfrutarmos um só espetáculo e um só relato, como as crianças pequeninas. Com suas infinitas variantes, que os disfarçam de antiquados ou novos, mas que são na essência sempre os mesmos. Também deve ter existido, portanto, Eduardos Muriel e Beatrizes Noguera em todos os tempos, para não falarmos nos comparsas; e Juanes de Vere aos montes, assim me chamava e assim me chamo, Juan Vere ou Juan de Vere, conforme quem diga ou pense meu nome. Minha figura não tem nada de original.
Na época ainda não existia divórcio, muito menos se podia esperar que viesse a existir um dia quando Muriel e sua mulher se casaram, uns vinte anos antes de eu me imiscuir em suas vidas, ou melhor, foram eles que atravessaram a minha, apenas a de um principiante, como se diz. Mas desde o momento em que você está no mundo começam a lhe acontecer coisas. Sua frágil roda incorpora você com ceticismo e tédio e o arrasta sem a menor vontade, pois é velha e triturou muitas vidas sem pressa à luz da sua vigia folgazã; a lua fria que cochila e observa com uma só pálpebra entreaberta conhece as histórias antes mesmo de acontecerem. E basta prestar atenção em alguém — ou lhe lançar um olhar indolente —, e esse alguém não poderá mais escapar, mesmo que se esconda e permaneça quieto e calado e não tome iniciativas nem faça nada. Mesmo que ele queira se escafeder, já o terão visto, como um vulto distante no oceano, que não se pode ignorar, do qual é preciso se esquivar ou se aproximar; ele conta para os outros, e os outros contam com ele, até que desaparece. Também não foi essa minha circunstância, afinal. Não fui nem um pouco passivo, nem fingi ser uma miragem, não tentei me fazer invisível.
Sempre me perguntei como é que as pessoas se atreviam a contrair matrimônio — e se atreveram séculos a fio — quando isso tinha um caráter definitivo; em especial as mulheres, para as quais era mais difícil encontrar desafogos ou tinham de se esmerar o dobro ou o triplo para ocultá-los, o quíntuplo se voltavam desses desafogos com um novo ser, e então tinham de mascará-lo antes mesmo que se configurasse nele um rosto e pudesse trazê-lo à terra: desde o instante da sua concepção, ou da sua detecção, ou do seu pressentimento — não vamos dizer desde o seu anúncio —, e transformado em impostor durante sua existência inteira, muitas vezes sem que ele jamais soubesse da sua impostura ou da sua procedência bastarda, nem mesmo quando era um velho e estava a ponto de não ser mais detectado por ninguém. É incontável o número de criaturas que tomaram por pai quem não era o seu, e por irmãos quem o era pela metade, e foram para a tumba com a crença e o erro intactos, ou é o engano a que as submeteram as impávidas mães desde o nascimento. Ao contrário das doenças e das dívidas — as outras duas coisas que em espanhol mais se “contraem”, as três compartilham o verbo como se todas fossem mau prognóstico ou mau agouro, ou em todo caso trabalhosas —, para o casamento era certo que não havia cura nem remédio nem saldo. Ou só os trazia a morte de um dos cônjuges, às vezes longamente ansiada em silêncio e menos vezes procurada ou induzida ou buscada, em geral ainda mais em silêncio, ou seria, melhor dizendo, em indizível segredo. Ou a morte dos dois, claro, e então já não havia mais nada, só os ignorantes filhos que tiveram, se havia e sobreviviam, e uma breve recordação. Ou talvez uma história, ocasionalmente. Uma história sutil e quase nunca contada, como não se costuma contar as histórias da vida íntima — tantas mães impávidas até o último alento, e também tantas não mães —; ou talvez sim, mas em sussurros, para que não sejam por completo como se não tivessem sido, nem fiquem no mudo travesseiro no qual, em prantos, afundou o rosto, nem tão só à vista do sonolento olho entreaberto da lua sentinela e fria.
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Autor: Javier Marías
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 34,93 (520 págs.)