“Escrever não consiste mais em narrar, mas em dizer que se narra, e aquilo que se diz se identifica com o próprio ato de dizer: a pessoa psicológica é substituída por uma pessoa linguística ou até gramatical, definida apenas por sua posição no discurso”.
Além de escritor de algumas das mais interessantes prosas fantásticas da história da literatura, desenvolvidas nas pequenas fendas das possibilidades do incontornável, Italo Calvino é também conhecido como um dos ensaístas mais brilhantes do século XX, profícuo crítico literário e crítico da cultura. Em Assunto encerrado – Discursos sobre literatura e sociedade, publicado originalmente em 1980, o italiano reuniu parte de sua crítica que ele mesmo julgava a mais representativa de seu percurso intelectual.
No volume, Calvino interpreta, com o estilo preciso que lhe é peculiar, as mudanças culturais ocorridas após a Segunda Guerra, a percepção da intelectualidade italiana do mundo em meio, a um só tempo, à estética neorrealista e às invenções pós-modernas do mundo cada vez mais globalizado. O escritor inicia as análises aqui reunidas no geral pelo cenário crítico italiano, tendo em vista autores como Pavese e Vittorini, Manzoni, Pasolini. Sua própria tomada de posição na juventude militante é revista e perspectivada, descortinando “uma história que tem seu sentido”.
O crítico Tony Monti, em artigo publicado na revista Cult, analisa: “‘No coração não guardava nem nostalgia, nem dúvida, nem apreensão. Para ele as coisas ainda eram inteiras e indiscutíveis, e assim era ele próprio’. É apenas no capítulo seguinte, o segundo, que o visconde é partido ao meio, como anuncia o título do romance de Italo Calvino. Essa passagem analítica, em que um homem inteiro se divide em duas metades, é imagem exemplar para as mudanças no percurso intelectual do autor em Assunto encerrado – discursos sobre literatura e sociedade, coletânea de ensaios que Calvino escreveu entre 1955 e 1980″. Para Monti, “Uma entre muitas possibilidades, os ensaios podem ser lidos, na sequência, como o desdobramento de uma poética para a obra ficcional do autor. Dos mais antigos aos mais recentes, os textos se sucedem como se pouco a pouco um visconde fosse se dividindo, transformando-se em uma estrutura complexa. No início, Calvino é mais assertivo, os diagnósticos negativos para a situação histórica são seguidos de respostas simples sobre como agir na situação (de certo modo, em acordo com o espírito revolucionário, proposto por Gramsci, “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”). Esse período corresponde, na ficção, à publicação da trilogia que inclui O visconde partido ao meio, com a qual se afasta do neorrealismo italiano. Segundo ele, a realidade histórica então presente não oferecia, se transfigurada em literatura, o potencial para ação que ele queria em seus enredos. Como alternativa, foi buscar essa possibilidade em universos fabulosos ambientados em um passado distante. Mas a distância no tempo não significou esquivar-se da política e dos valores do mundo presente. A discussão moral, bastante evidente nos romances e ensaios dessa fase – um dos viscondes resultantes era sempre mau, o outro sempre bom –, é parte das propostas para vincular a literatura e a sociedade. No plano da forma, além de expandir as fronteiras da linguagem (e do pensamento), para Calvino a literatura impõe, com as escolhas que organizam o texto, modelos de linguagem (modos de pensar) que são ao mesmo tempo estéticos e éticos“.
A escritora Maria Célia Martirani, em crítica publicada no jornal Rascunho, conta que o “título escolhido pelo autor, traduzido da expressão Una pietra sopra em italiano, quer conotar a intenção de fechar o ciclo de suas reflexões sobre os mais variados temas, envolvendo literatura e sociedade. Mas, no fundo, se Calvino buscava algo como “ponto e basta”, o que parece ter alcançado, devido à profundidade minuciosa desses ensaios, é exatamente o contrário. Em vez de um ponto final ou de um assunto que se encerra, vemos desfilar diante de nós a policromia de um mosaico de idéias, que só se expande e se abre a questões que propõem muito mais dúvidas do que respostas”. Para ela, “diante destes estudos, importa notar a nítida relação de complementaridade que estabelecem com a prolífera obra ficcional do autor. Assim sendo, faz-se necessário atentar a algumas particularidades do ficcionista, que ecoam ou, em boa medida, ilustram alguns dos temas abordados pelo ensaísta“.
O volume foi traduzido por Roberta Barni e publicado pela Companhia das Letras em 2009. A editora disponibiliza um trecho para visualização.
ASSUNTO ENCERRADO – DISCURSOS SOBRE LITERATURA E SOCIEDADE
Autor: Italo Calvino
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 39,90 (392 págs.)