O escritor italiano Italo Calvino (1923-1985) pertence a um grupo não muito numeroso: o de autores que conseguem fazer trabalhos excepcionais tanto na ficção quanto na não-ficção.
É o caso de George Orwell – talvez até melhor ensaísta que romancista, mas isso seria conversa que duraria até o fim dos tempos -, Jorge Luis Borges, Cesar Aira, J.M. Coetzee, e, no Brasil, Nelson Rodrigues, Machado de Assis – pouco reconhecido por suas crônicas e ensaios, a propósito -, entre outros.
“Assunto encerrado“, reunião de conferências e ensaios de Calvino sobre os mais variados temas, é uma boa amostra da visão arguta que tinha o autor. Seu objetivo com esses textos não poderia ser mais “presunçosa”: “Diria que meu objetivo talvez fosse estabelecer algumas linhas gerais que servissem de pressuposto a meu trabalho e ao dos outros; postular uma cultura como contexto em que situar as obras ainda a escrever. A ambição juvenil de que parti foi a do projeto de construção de uma nova literatura que por sua vez servisse para a construção de uma nova sociedade”.
E já no primeiro ensaio, originalmente uma conferência, “O miolo do leão”, Calvino mostra a que veio: “As coisas que a literatura pode buscas e ensinar são poucas, mas insubstituíveis: a maneira de olhar o próximo e a si próprios, de relacionar fatos pessoais e fatos gerais, de atribuir valor a pequenas coisas ou a grandes, de considerar os próprios limites e vícios e os dos outros, de encontrar as proporções da vida e o lugar do amor nela, e sua força e seu ritmo, e o lugar da morte, o modo de pensar ou de não pensar nela; a literatura pode ensinar a dureza, a piedade, a tristeza, a ironia, o humor e muitas outras coisas necessárias e difíceis. O resto, que se vá aprender em algum outro lugar, da ciência, da história, da vida, como nós todos temos de ir aprender continuamente”.
Extremamente habilidoso com as palavras, além de ter um nível cultural altíssimo, Italo Calvino faz uma crítica à civilização contemporânea na conferência “Os beatniks e o ‘sistema'”. Segundo ele, “estamos vivendo no tempo das invasões bárbaras”: “Não adianta olhar em torno, buscando identificar os bárbaros em algumas categorias de pessoas. Os bárbaros, desta vez, não são pessoas: são coisas. São os objetos que acreditamos possuir e que nos possuem; é o desenvolvimento produtivo, que devia estar a nosso serviço mas do qual estamos nos tornando escravos; são os meios de difusão do nosso pensamento, que procuram nos impedir de continuar a pensar; é a abundância de bens, que nos dá não o conforto do bem-estar, mas a ansiedade do consumo forçado (…)”.
Cada ensaio ou conferência de Calvino pode dar origem a um novo artigo. O que dizer do texto “Para quem se escreve?”, por exemplo, no qual ele declara “A contribuição que a literatura pode dar é apenas indireta: por exemplo, recusando decididamente toda solução paternalista; se pressupusermos um leitor menos culto que o escritor e assumirmos com relação a ele uma postura pedagógica, divulgadora, tranquilizadora, só confirmaremos o desnível [cultural]; toda tentativa de adoçar a situação com paliativos (uma literatura ‘popular’) é um passo para trás, e não um passo adiante. A literatura não é escola; ela deve pressupor um público mais culto, mais culto que o escritor; se esse público existe ou não, não importa”.
Às vezes duro ou polêmico, mas sempre elegante e munido de bons argumentos, Italo Calvino não foge do debate, e escreve até mesmo sobre o uso excessivo de palavrões.
Num tempo em que o politicamente correto é o que vigora, o espírito combativo de Calvino faz muita falta. Resta o consolo de que podemos ter a companhia de seus livros.