Literatura

Às avessas

28 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

gravura de Richard Lithgow

Minha vida sem banho, de Bernardo Ajzenberg, lançado no mês passado pela Rocco, vem de um jeito inusitado de encontro às discussões, ultimamente tão frequentes, sobre a escassez de água e seu uso radicalmente racionado.

Seu protagonista, Célio, num dia de inverno acovarda-se frente a um banho frio, pois seu aquecedor quebrara, e resolve não tomar banho. Nem naquele dia, tampouco nos seguintes. A decisão de parar de tomar banho deu início a um verdadeiro projeto de vida. Que, paradoxalmente, reverteu-se na repentina aceitação social do protagonista, a partir de então, notado e respeitado. O autor constrói assim, com humor, uma crítica à superficialidade das relações e utopias contemporâneas, além de mostrar a canibalização da comunicação que é realizada através das redes sociais.

O romance, que tem a cidade de São Paulo como pano de fundo, é estruturado sobre imbricações de linhas distintas, pondo em questão a fragmentação familiar, a hipocrisia social, crises emocionais e existenciais, as relações afetivas problemáticas, a solidão, as raízes judaicas, os resquícios traumáticos de uma geração que cresceu sob a ditadura militar brasileira. O extenso leque de personagens coloca-se a serviço quer da história principal, quer das várias histórias que surgem umas dentro de outras. Em meio a eles, o protagonista Célio, um funcionário de um instituto de cunho ambientalista, que, de uma hora para outra, tomado pelo mero enfado, resolve adotar a drástica atitude ambientalista tão pouco higiênica que dá nome ao romance.

Em entrevista, ele analisa que “essa história expõe, entre outras coisas, uma das mais tristes mazelas contemporâneas: a valorização tão súbita e excessiva quanto superficial e passageira daquilo que é estranho, supostamente subversivo, escandaloso, mas que, no fundo, aponta para os mesmos impasses vividos pela sociedade desde muitas décadas atrás”. E acordo com Ajzenberg, “sob a ponta do iceberg da hipercomunicação gerada pelas chamadas redes sociais vai-se formando uma camada subterrânea crescente de imediatismo barato, banalização dos afetos, padronização dos sentimentos, canibalização da comunicação real e profunda. A consequência desse conjunto são laços fluidos e solidão. Falamos com todo mundo e com ninguém ao mesmo tempo. Temos cada vez menos gente realmente próxima de nós”. Pensando o banho como metafórico, ainda na mesma entrevista, o autor pontua: “A decisão de parar de tomar banho – com todas as consequências individuais e sociais que isso provoca – reflete, em Célio, uma necessidade profunda de autonomia, de poder escolher seus próprios caminhos ou ao menos batalhar para isso. Ele quer ser um indivíduo, pleno, e não, como se diz, “um número na multidão”. Talvez seja esse o “banho” de que precisamos: a retomada daquilo que nos é próprio e único sem que isso seja algo incompatível com a socialização”.

Segundo José Castello, em resenha publicada no jornal O Globo: “Engolfados pelo ritmo alucinante do novo milênio, já não nos sobra tempo para os projetos individuais. Não conseguimos mais afirmar posição – que ainda nos pertence – de Sujeitos, e não de Objetos. Estamos presos a uma armadilha tautológica, resumida na epígrafe que Ajzenberg toma de empréstimo do escritor húngaro Imre Kertész: “Por que me sinto tão perdido? Obviamente porque estou perdido. Em busca de um fio de sentido a que possa se apegar, Célio, motivado por um curto-circuito na resistência do boiler de sua casa, que em pleno inverno o condena aos banhos frios, toma uma inusitada decisão: viver uma “vida sem banho”. O desprezo pela higiene pessoal provoca um corte abrupto em sua rotina. A decisão se transforma em um ralo, pelo qual escorrem todos os antigos vícios e automatismos, obrigando-o a se reinventar. Uma simples peça deslocada de seu lugar habitual leva todo o edifício existencial a desmanchar-se. Somos frágeis e desprotegidos. Qualquer mínima alteração de expectativas nos sacode e arrasta”.

Para Manoel da Costa Pinho, conforme analisou em resenha escrita ao jornal Folha de São Paulo, apesar do interesse que desperta o enredo inusitado, “o livro de Ajzenberg não fica restrito a esse fio narrativo bizarro, cujo protagonista é uma espécie de cruzamento entre o personagem dos quadrinhos Cascão e Bartleby, criação do escritor americano Herman Melville, que vive imerso no imobilismo monomaníaco”. Para o crítico, “se o Projeto de Célio (sua militância antibanho) é uma caricatura tanto da Causa ecológica quanto da Organização em prol da Revolução – sempre em maiúsculas, como convém à magia retórica das seitas –, o destino de seus pais, que agonizam no tempo presente da narrativa, abre a cortina de uma sujeira que coloca em xeque a própria paternidade do protagonista. Contra essas impurezas ideológicas e afetivas – e tendo como pano de fundo o sentimento de culpa judaico e a obsessão do pai de Célio pelo Holocausto como “fuga do presente” –, o livro de Ajzenberg faz da falta de banho uma recusa tragicômica das ilusões de purificação”.

A Rocco disponibiliza um trecho para leitura.

_____________

“Provavelmente um curto-circuito fez queimar a resistência do boiler da casa. Até me despi, mas no trajeto entre o quarto e o banheiro mudei de ideia: o simples pensamento de entrar debaixo do chuveiro gelado no inverno me causou arrepio; então, desisti. Nem estava suado – ao contrário, a noite fora fria. Ativei o olfato para verificar a situação do corpo e concluí que podia, sim, dispensar o banho naquele começo de manhã”.

_____________

 

 

minha vida sem banho

 

MINHA VIDA SEM BANHO

Autor: Bernardo Ajzenberg
Editora: Rocco
Preço: R$ 24,50 (192 págs.)

 

 

 

 

 

Send to Kindle

Comentários