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Biocapitalismo

13 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone
gravura de Iberê Camargo

gravura de Iberê Camargo

O filósofo italiano Antonio Negri, em Biocapitalismo, analisa a crescente onda de ocupações do espaço público, fruto do que chama, com Espinosa, manifestações da “multidão” – tida como fonte de articulação de desejos represados e díspares, unidos na ocupação e construção de um espaço de resistência e de emancipação, balizando os termos da biopolítica.

O livro, com tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro, acaba de ser lançada no Brasil pela editora Iluminuras.

Segundo o professor Márcio Seligmann-Silva, o pensamento de Negri dialoga com a história política da América Latina e, portanto, faz-se imprescindível para pensarmos nosso presente:“Antonio Negri tem tentado reinventar a política, sobretudo a prática das esquerdas, introduzindo e repaginando uma série de conceitos. Não por acaso, este livro, editado por Adrián Cangi e Ariel Pennisi, vem de uma obra compilada na Argentina: a escuta que Negri encontra na América Latina é particularmente grande. Temos muito a dialogar com sua obra”.

Seligman-Silva contextualiza e sintetiza o cerne do desenvolvimento argumentativo do texto: “A crise (endêmica) econômica, misturada à crise da representação política, tem provocado uma nova onda de ocupações do espaço público na América Latina e pelo mundo afora. O Estado, como agente do capital financeiro, tem tido dificuldades em enfrentar essas novas ondas que emanam do que Negri, com Spinoza, chama de manifestações da ‘multidão’. Essa categoria política não tem nada a ver com a de ‘massas’, que esteve, no século XX, no centro dos fascismos. Para Negri, na era do biopoder, encarnado no que ele denomina de biocapitalismo, deve-se inventar a biopolítica. As lutas operárias obrigaram o capital a se deslocar cada vez mais para a administração da vida, da saúde, da educação, da velhice, consolidando o Estado/assistente (também em vias de dissolução…). Mas existe uma reserva de resistência que se manifesta na construção da multidão, não como sujeito político tradicional, mas como fonte de articulação de desejos represados, de demandas de minorias e de diversos grupos díspares, mas unidos na ocupação e construção de um espaço de resistência, do comum, como instância de ruptura e de emancipação. Trata-se de um movimento de apoderação, de uma ‘multidão dos potentes’, que tem no imperium democraticum não um ideal abstrato, mas uma força que destrói o conformismo, o ânimo triste, melancólico, e leva a uma atividade crítica transformadora, imaginativa e em constante devir”.

Espinosa, em seu último texto, o Tratado político, pela primeira vez teorizou “a potência da multidão”. A multidão, para o filósofo, é uma potência múltipla totalizante. O professor Homero Santiago, da USP, perspectiva, histórica e filosoficamente, o conceito de multidão, de Espinosa a Negri, em artigo publicado na revista Cult. Analisando o conceito conforme tomado por Negri, Santiago aponta “[…] em primeiro lugar, multidão nos dá o nome de um agente ou sujeito coletivo que pode agir em comum, unitariamente, com a simultânea manutenção de suas diferenças internas. Mas não só o nome de um sujeito. A novidade da nomeação explica-se por falarmos de um novo nome para um novo sujeito ou agente. Multidão é um ‘conceito de classe’ tanto por retomar a discussão de classe quanto por renová-la. Tradicionalmente, o sujeito coletivo anticapitalista foi pensado como o proletariado, a classe operária ou a classe trabalhadora. Agora, pela nova nomeação, quer-se sublinhar que o sujeito coletivo não está mais restrito a esses grupos tradicionais e que, sobretudo, não precisa buscar sua unidade a partir da pura determinação do sistema capitalista”. No seio da crítica ao capitalismo o professor mostra que há, para Negri, uma profunda questão ontológica; segundo sua análise: “Negri é e sempre foi um marxista. Não há dúvida. Mas igualmente um pensador que detecta uma crise do marxismo que da década de 70 e cujo ápice é a tese de um “fim da história” enunciada por Francis Fukuyama em 1989. O curioso é que para Negri é exatamente isso que ocasiona, ou antes passa a exigir da parte daqueles que, em suas palavras, não querem “comprazer-se na própria passividade”, uma renovação teórica profunda, uma verdadeira guinada ontológica mediante um “retorno a Espinosa” que é também um “retorno ao comunismo”. A justificativa diz tudo: porque “Espinosa é a ontologia”. A crença num “fim da história”, ele argumenta, depende de dois pressupostos negativos: recusar “toda verdade que a práxis humana constitui”, negar “ao comum construir-se pragmaticamente como tal”. É assim, e só assim, que “o tal ‘fim da história’ instala-se como senhor”. No fundo, para Negri, a questão não é somente política, mas antes ontológica, no sentido de que concerne à potência produtiva da práxis humana em geral e especialmente à da práxis coletiva, comum. Daí toda a importância do retorno a Espinosa e a sua ontologia. A particular conexão entre potência e multidão que o espinosismo estabelece seria, primeiro, um antídoto eficaz a toda e qualquer tentação de apregoar um “fim da história”; segundo, uma via profícua para renovação do marxismo. Toda questão prática, repete o italiano inúmeras vezes, é no fundo uma questão ontológica e é a própria ontologia do ser espinosano que nos garantiria um horizonte sempre aberto à criação ou constituição de novas formas de vida, à invenção de uma nova história; pois o ser, em Espinosa, “é já revolução”, noutras palavras, “infinito reabrir-se da possibilidade”.

Por outro lado conceitual, dois termos que fundamentam a discussão a respeito do “biocapitalismo”, biopolítica e biopoder, são desenvolvidos por Negri a partir de sua formulação foucaultiana. Em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos, o italiano pontuou, quando questionado sobre a atualidade das análises de Foucault para compreender o movimento das sociedades, que é comum “distinguir três Foucault: até o final dos anos 60, o estudo da emergência do discurso das ciências humanas, isto é, ao mesmo tempo aquilo que ele chama de arqueologia do saber e de sua economia nos últimos três séculos, e uma ampla leitura da modernidade ocidental através do conceito de episteme; depois, nos anos 70, as pesquisas sobre as relações entre os saberes e os poderes, sobre o aparecimento das disciplinas, do controle e dos biopoderes, da norma e da biopolítica, isto é, ao mesmo tempo uma analítica geral do poder e a tentativa de fazer a história do desenvolvimento do conceito de soberania desde a sua emergência no pensamento político até nossos dias; e, finalmente, nos anos 80, a análise dos processos de subjetivação sob a dupla perspectiva da relação estética em si e da relação política aos outros – mas, sem dúvida, trata-se da mesma pesquisa: o cruzamento da estética de si e do cuidado político é aquilo que se chama também de ética”. Segundo Negri, quando “Foucault se põe a trabalhar na passagem entre o fim do século XVIII e o começo do século XIX, isto é, a partir de Vigiar e Punir ele se encontra diante de uma dimensão específica de relações de poder, de dispositivos e de estratégias que ela implica, isto é, diante de um tipo de relações de poder inteiramente articulado com o desenvolvimento do capitalismo. Isso exige um investimento total da vida na medida em que a constituição de uma força de trabalho, por um lado, e as exigências de rentabilidade da produção, por outro, o requerem. O poder tornou-se biopoder”. Na mesma entrevista, Negri comenta que, “de um ponto de vista marxiano, o desenvolvimento do capitalismo (compreendido na forma extremamente desenvolvida do mercado mundial) se enraíza tanto nas transformações como nas contradições da exploração do trabalho. São as lutas dos trabalhadores que transformam as instituições políticas e as formas de poder do capital”. Trata-se de uma transformação, pela qual “toda a sociedade e a vida dos homens tornam-se […] objeto de um interesse novo por parte do poder. Marx havia perfeitamente previsto (nos Grundrisse e em O Capital) esse desenvolvimento, que ele chamava de ‘subsunção real da sociedade ao capital’. Foucault compreendeu, creio, essa passagem histórica quando descreveu, por seu lado, a genealogia do investimento da vida pelo poder – da vida individual como da vida social. Mas a subsunção da sociedade ao capital (como a emergência dos biopoderes) é muito mais frágil do que acreditamos […]. Na realidade, a subsunção real da sociedade (isto é, do trabalho social) ao capital generaliza a contradição da exploração em todos os níveis da sociedade, assim como a extensão dos biopoderes abre a uma resposta biopolítica da sociedade: não mais os poderes sobre a vida, mas potência da vida como resposta a esses poderes; em suma, isso abre para a possibilidade da insurreição e da proliferação da liberdade, da produção de subjetividade e da invenção de novas formas de luta”.

Negri ganhou notoriedade internacional nos primeiros anos do século XXI, após o lançamento do livro Império – que se tornou um manifesto do movimento anti-globalização – e de sua sequência, Multidão, ambos escritos em co-autoria com seu ex-aluno Michael Hardt.

 

biocapitalismo

 

 

BIOCAPITALISMO

Autor: Antonio Negri
Editora: Iluminuras
Preço: R$ 27,30 (144 págs.)

 

 

 

 

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