matraca

A bordo

25 março, 2014 | Por Isabela Gaglianone

“As velas representam para mim o mundo mais sincero da vida. O mundo da sabedoria da obediência aos sinais da natureza”. 

 

Desfazer-se de uma vida citadina para ser um cidadão cosmopolita de outra maneira: pelo mundo, a bordo de um veleiro.

Essa é uma decisão cada vez mais tomada ao redor do mundo. E comum, entre as pessoas que tomam essa decisão, é manter um diário, o famoso diário de bordo, que recebe aquilo que vai tornar-se lembrança como a promessa impressa de tornar possível seu resgate. O diário deste casal, em especial, que vive no veleiro Avoante, pode ser acompanhada semanalmente através da coluna que Nelson mantém no jornal Tribuna do Norte. Sua vida a bordo tornou-se, em suas mãos, material para crônicas semanais. Os textos partem de pequenos detalhes e curiosidades sobre a vida náutica e desembocam em reflexões gerais, numa fluente prosa serena.

Adotar um barco como casa, o oceano como endereço, é de fato encarnar uma compreensão incondicional do mundo e da sociedade. Pois a decisão de viver em alto-mar pode ser a resposta do inconformismo irônico de uma dialética pessoal da instabilidade, grau negativo primeiro. Resposta a um incômodo impotente que acompanha a percepção, capital: de que é justamente do permanente prenúncio de instabilidade – social, financeira, científica, ambiental – alastrado neste nosso modelo de mundo, insistente a perseguir uma ideia periscópica de progresso, que erige-se a necessidade de identificação com algo concreto que simbolize poder econômico, consequentemente social, em cuja sombra espera-se poder escorar para alcançar então uma estabilidade; paradoxo de uma sentença míope e circular, autofágica. Distanciar-se um pouco desse modelo de que se critica a inconstância, justamente adotando uma vida sobre a ondulação do mar, é uma decisão dotada de um lirismo social: é uma metáfora encarnada. Materializa-se, numa casa que flutua numa superfície incerta, uma vida que se baste com a imensidão com que a própria individualidade se depara.

 

A história e os contos náuticos definem o homem do mar como pessoa rude e forjada no caldeirão borbulhante de sal, cascas de mariscos, algas e temperado com pitadas dos elementos que castigam e definem a alma, mas nem por isso, menos amáveis e cumpridores das regras. Essa mistura saída das profundezas abissais dos oceanos o deixa solidário, respeitoso com seus pares e mesmo na atrocidade das guerras, o faz reconhecer a bravura e inteligência inconteste do inimigo. Hoje, nesses tempos modernosos em que a pressa literalmente se definiu como inimiga da perfeição, o homem que se diz do mar perdeu o rumo da história.

(Trecho do diário, de janeiro de 2014)

 

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DIÁRIO DO AVOANTE

Autor: Nelson Mattos Filho
Editora: Caravela Selo Cultural
Preço: R$ 50,00 (200 págs.)

 

 

 

 

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