Guia de Leitura

Civilização e barbárie

24 julho, 2015 | Por Isabela Gaglianone

São mesmo, estes termos, opostos e excludentes, ou complementares e, mesmo, necessários?

A discordância envolve profundas questões ideológicas e políticas, concernentes a distintas interpretações críticas da história e das dinâmicas sociológicas desenvolvidas em torno de uma ideia de civilidade que abarca valores morais, culturais e sociais.

A bárbarie é intrínseca, paralela ou anterior à civilização? Parte do próprio metabolismo da sociedade, ou seu avesso imprescindível?

 

Domingo Faustino Sarmiento, "Facundo ou civilização e barbárie"

Domingo Faustino Sarmiento, “Facundo ou civilização e barbárie”

Facundo foi escrito em 1845 por Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888). A obra é considerada fundadora da literatura argentina pelo pioneirismo na ruptura com a padronização europeia das letras. O livro, uma mistura de biografia, romance e ensaio político, tematiza a formação nacional, entre a civilização e a barbárie.

O autor parte da análise da peculiar natureza do pampa e das relações do homem com este meio para construir seu argumento. A natureza, para Sarmiento, ganha roupagem política: é um fator que condiciona significativamente o destino dos homens, a formação de seu caráter moral e as possibilidades da vida em sociedade. O cenário desértico do pampa opõe-se ao das cidades na medida e que a barbárie opõe-se à civilização.

Segundo ele, havia, antes do início do processo de independência argentina, duas formas de vida social diferentes, “rivais e incompatíveis”: “uma espanhola, europeia, civilizada, e a outra bárbara, americana, quase indígena”. Sem misturarem-se, os homens da cidade – locus por excelência da civilidade – conservaram e cultivaram os hábitos europeus, enquanto os homens do campo desenvolveram costumes e tradições próprios a uma vida defrontada com os desafios de sobrevivência próprios ao convívio com a natureza selvagem.

Porém, segundo Sarmiento, a barbárie do deserto, com a Revolução de 1810 e as guerras de independência, foi levada a penetrar as cidades e arrasar a “civilização”.

A expressão como colocada no título, civilização “e” barbárie, portanto, retrata a simultânea existência de dois países, um civilizado – uma Argentina branca, ilustrada, integrada com a Europa – da ilustração, dos brancos, da integração com a Europa – e um bárbaro – a Argentina do analfabetismo, dos mestiços, do isolamento. A clássica antinomia coloca, portanto, em jogo uma definição dos sujeitos constituintes do corpo político da nação, em conformidade às concepções de um projeto homogeneizador de Estado, nação e sociedade.

O livro é notável pela destreza literária combinada à complexa dimensão político-sociológica. Enaltecido por Jorge Luis Borges, Facundo é, até os dias de hoje, um arcabouço ao qual se voltam intelectuais e políticos em busca de compreensão para as questões atuais da Argentina e da América Latina.

 

 

Jean Starobinski, “As máscaras da civilização”

Jean Starobinski, “As máscaras da civilização”

Jean Starobinski, na reunião de ensaios As máscaras da civilização, interpreta a linguagem e os argumentos desenvolvidos pelos filósofos da Ilustração em torno da ideia de “civilização” na França dos séculos XVII e XVIII.

Partindo da reconstituição histórica do vocábulo que acompanha o sentido moderno de processo de aperfeiçoamento do homem desde a segunda metade do século XVIII, Starobinski questiona as relações entre a doutrina clássica da civilidade e a arte da adulação, reflete sobre as funções das fábulas e dos mitos nos séculos XVII e XVIII, analisa as relações entre exílio, sátira e tirania em Montesquieu, o estilo filosófico em Voltaire e a busca do remédio no próprio mal, em Rousseau.

Diz o autor que os laços recíprocos que os homens são obrigados a travar cotidianamente “podem, em certas condições, não apenas ser purificados dos riscos da violência, mas tornar-se fonte de prazer” e, portanto “para combater uma ilusão de civilidade que encobre a violência em vez de a reprimir”, a sociedade deveria reinventar-se, a “menos que se aceite a ilusão, dominando-a, exorcizando-a se possível, e que se consinta, entre pessoas devidamente prevenidas, em relações duvidosas”.

Ao longo dos ensaios, as sutis tensões entre civilização e barbárie, civilidade e incivilidade, modelos de sociabilidade e de vida social, bem como os significados da civilização e da civilidade no mundo moderno são investigados, tendo em vista seus desdobramentos culturais, éticos, políticos e morais. Civilização, para ele é um “termo carregado de sagrado”, que “demoniza o seu antônimo. A palavra civilização, se já não designa um fato submetido ao julgamento, mas um valor incontestável, entra no arsenal verbal do louvor e da acusação. Não se trata mais de avaliar os defeitos ou os méritos da civilização. Ela própria se torna o critério por excelência: julgar-se-á em nome da civilização.”

A noção de civilização como posterior à barbárie, segundo ele, atravessa a história da filosofia e permeia os textos de pensadores marxistas, inclusive no vocabulário de Engels. Segundo Starobinski: “A palavra civilização pôde ser adotada tanto mais rapidamente quanto constituía um vocábulo sintético para um conceito preexistente, formulado anteriormente de maneira múltipla e variada: abrandamento dos costumes, educação dos espíritos, desenvolvimento da polidez, cultura das artes e das ciências, crescimento do comércio e da indústria, aquisição das comodidades materiais e do luxo. Para os indivíduos, os povos, a humanidade inteira, ela designa em primeiro lugar o processo que faz deles civilizados (termo preexistente), e depois o resultado cumulativo desse processo. É um conceito unificador”.

 

 

István Meszáros, "O século XXI - socialismo ou barbárie?"

István Meszáros, “O século XXI – socialismo ou barbárie?”

O filósofo húngaro István Mészáros disse que, “se tivesse que modificar as famosas palavras de Rosa Luxemburgo, ‘socialismo ou barbárie’, acrescentaria: ‘Barbárie se tivermos sorte’. Porque o extermínio da humanidade é a ameaça que se desenrola. Enquanto falharmos em resolver os grandes problemas que se espalham por todas as dimensões da nossa existência e nas relações com a natureza, o perigo seguirá no horizonte”.

Seu livro O século XXI – socialismo ou barbárie?, publicado no Brasil em 2003, denuncia a falsidade da ideia de que chegamos ao fim do imperialismo e da era dos impérios, num mundo caracterizado pelos massacres dos povos e pela perda dos sentidos e dos valores de humanidade e de vida social, regido por uma política de destruição.

Segundo o professor Ricardo Antunes, “se Para além do capital  é a obra maior de István Mészáros, quase sem paralelos pela envergadura e pela densidade, neste início do século XXI, em que alguns dos nexos essenciais do capital dos nossos dias foram exaustiva e abundantemente tematizados e demolidos pelo autor, este […]  O século XXI: socialismo ou barbárie? é seu corolário político de combate”.

O sociólogo brasileiro Giovanni Alves é um dos principais teóricos da noção de metabolismo social, conforme utilizada por István Mészáros, depois de Marx. Em Trabalho e subjetividade discute o sociometabolismo da barbárie: “O que nos interessa salientar é a afinidade compositiva entre sociometabolismo da barbárie (o complexo social de dessocialização e desefetivação do ser genérico do homem que surge a partir da degradação ampliada do mundo do trabalho) e vigência da acumulação por espoliação, principalmente no plano do metabolismo social”. A civilização contém em seu bojo a barbárie social e, hoje, ela representa a nova temporalidade histórica do capital. Diz Alves: “O que consideramos “barbárie social” é uma dimensão da barbárie histórica que se constitui como metabolismo social nas condições do capitalismo global em sua etapa de hipertrofia financeira. Ela é um elemento compositivo da era histórica de declínio estrutural do capital caracterizado pela constituição do capitalismo global. É a terceira modernidade do capital em sua etapa senil capaz de colocar, no plano global, impasses civilizatórios inéditos na história humana. A nova era de barbárie social se caracteriza, por um lado, pela crise de valorização e a financeirização da riqueza capitalista, que provocaram alterações estruturais na dinâmica da acumulação de valor, com impactos diruptivos no padrão de concorrência intracapitalista e no processo de desenvolvimento e organização das políticas públicas e estruturação do mercado de trabalho, com a crise do emprego e a disseminação da nova precariedade salarial no núcleo orgânico mais desenvolvido do sistema mundial do capital”.

 

 

Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, in: Obras escolhidas I

Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, in: Obras escolhidas I

Na sétima tese “Sobre o Conceito de História”, Walter Benjamin escreve: “Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são os que chamamos de bens culturais. Todos os bens materiais que o materialista histórico vê têm uma origem que ele não pode contemplar sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima de seus contemporâneos. Nunca houve um monumento de cultura que também não fosse um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo” [publicado em Magia e técnica, arte e política, com tradução de Sergio Paulo Rouanet].

Segundo a análise da filósofa brasileira Marilena Chaui, Benjamin situa a barbárie no interior da cultura ou da civilização, recusando a dicotomia tradicional, que localiza a barbárie alhures e realizada no outro. Para o filósofo, diz Chauí “a tese de Benjamin coloca a barbárie não só como o avesso necessário da civilização, mas como o pressuposto dela, como aquilo que a civilização engendra ao produzir-se a si mesma como cultura. O bárbaro não está no exterior, mas é interno ao movimento de criação e transmissão da cultura, é o que causa horror àquele que contempla o cortejo triunfal dos vencedores pisoteando os corpos dos vencidos e conhece o preço de infâmia de cada monumento da civilização. A atualidade da tese de Benjamin, cujo pano de fundo histórico foi o nazismo, não é metafórica, mas encontra-se literalmente afirmada em nosso presente: em março de 2003, menosprezando a Organização das Nações Unidas e pisoteando a ideia de direito das gentes ou de direito e ordem internacionais, as tropas dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha invadiram o Iraque, em nome da civilização, contra a barbárie…”.

Para Benjamin, embora Marx e Engels tenham intuído a barbárie por vir em seu prognóstico da evolução do capitalismo, não compreenderam a barbárie moderna — barbárie industrial, dinâmica, inaugurada pelo progresso técnico e científico. Benjamin ataca a ideologia do progresso em todos os seus elementos, submetendo-os a concepção homogênea, vazia e mecânica do tempo histórico.

 

 

Adauto Novaes (org.), “Civilização e Barbárie”

Adauto Novaes (org.), “Civilização e Barbárie”

Reunindo textos de intelectuais de diversas áreas, o livro Civilização e barbárie, organizado por Adauto Novaes, apresenta um novo conjunto de artigos escritos por intelectuais consagrados, como os filósofos Marilena Chaui e Francis Wolff, a psicanalista Maria Rita Kehl, o físico Luiz Alberto Oliveira, o jornalista Marcelo Coelho, o especialista em islamismo Abdelwahab Meddeb. Os ensaios discutem divergências e aproximações entre as noções de civilização e de barbárie.

Segundo Adauto, “não há atividade do espírito – filosofia, literatura, moral, política, estética – que não se pergunte hoje o que é ser civilizado (e, em consequência, quem é o bárbaro), o que é ser moderno”; porém, “mais que a barbárie, o que define nossa situação hoje é a ausência de um sentido para o termo civilização”.

O debate, que é não novidade, volta constantemente a ser atualizado, a cada intervenção militar norte-americana a países de território alhures, a cada ataque terrorista. Reinaugura questões como o sentido da oposição entre Ocidente e Oriente, o impacto da civilização sobre as liberdades individuais, a verdade da história.

Para o filósofo político e historiador Newton Bignotto, autor do artigo “Tolerância e diferença”, uma das questões despertadas pela contraposição dos dois termos é a tolerância; diz ele que o “que não podemos perder de vista, e que tende a desaparecer na visão dos multiculturalistas, é que a separação entre o diferente e o intolerável resulta de um conjunto de fatores que não dependem apenas da vontade de tolerar o outro, mas também da própria constituição histórica da figura da alteridade”. No modelo de tolerância das sociedades liberais, o indivíduo afirma “o particular e o individual, e nunca o que pretende a universalidade. Assim, o indivíduo liberal terá direito a professar a fé que quiser e a escolher o grupo de opinião que desejar, desde que continue a participar da vida política como um produto único de escolha individuais”. Bignotto mostra que o desenvolvimento da ideia de civilização do século XVIII – importante ferramenta para as nações europeias para a construção de suas identidades e para o traçado de suas fronteiras – contou com a recriação da figura do bárbaro, pela qual “a civilização foi paulatinamente ocupando o lugar que pertenceu à religião. Ora, assim como os bárbaros não evoluíam na óptica dos gregos, o mesmo acontecerá com as nações e povos que não se mostraram capazes de seguir o fluxo das Luzes”. Instaura-se, assim, contra o “bárbaro” a intolerância e legitima-se a radicalização das diferenças.

Para o filósofo Francis Wolff, no ensaio “Civilizações da intolerância”, diz que “bárbara é toda cultura, que não possua estrutura que lhe permita admitir ou reconhecer outra cultura, ou seja, a existência de outra forma de humanidade. São, da mesma forma, bárbaros, os atos, costumes ou práticas que têm como finalidade a negação de uma forma específica da existência humana”. Propondo três categorias de análise para cada um dos termos – a “barbárie” dos rituais antropofágicos, da destruição em massa de patrimônios, do massacre de pessoas, a “civilização” da domesticação das paixões, do culto às artes, às ciências e às letras, do respeito, compaixão e cooperação para com o outro –, Wolff mostra que é possível ocorrer um cruzamento entre ações civilizadas e bárbaras: “Talvez exista algo pior, uma barbárie maior ainda. Um povo, uma nação, um homem pode chegar ao cúmulo da barbárie dando mostras, por outro lado, de um refinamento ou de uma polidez extremos (sendo civilizados, no primeiro sentido), e de uma altíssima cultura (sendo civilizados no segundo sentido). É o caso da Alemanha nazista e das condições em que ocorreu um dos crimes mais bárbaros da história, o extermínio dos judeus e dos ciganos. Que esse genocídio tenha ocorrido no país de Goethe e Schiller, de Kant e Hegel, de Beethoven e Schubert, ou seja, algumas das sumidades da civilização ocidental, só acrescenta mais horror à barbárie. Havia, é claro, torturadores nazistas sanguinários e ignorantes. Mas esse não era o perfil predominante. Foi um crime desproporcional, mas cometido racionalmente, industrialmente, por burocratas frios e militares polidos”.

 

 

A análise da barbárie em relação à civilização e à civilidade no mundo moderno, revela, como definiu o historiador da arte e da cultura Aby Warburg (1866-1929), uma “tragédia da cultura”, marcada sobre uma constante revisão dos valores éticos e morais.

Violência urbana, extermínio de povos e de tribos, repressão policial a manifesações político-sociais, apartheids, trabalho escravo, torturas políticas.

Trata-se, entre a ideia de civilidade conforme concebida pela ilustração do século XVIII e que persiste até hoje, e as múltiplas facetas da barbárie que essa própria ideia encobre, de uma relação complexa, antagônica e complementar. As decorrências teóricas da discussão sobre a natureza e a temerária definição fronteiriça da antinomia, colocam em evidência a discreta proximidade de supostos antagonismos indissolúveis. Também problematizam sua relação com diversas questões, culturais e políticas, como intolerância, imperialismos, racionalismo, civilização e guerra.

 

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