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Do complexo fenômeno trágico na modernidade

4 junho, 2014 | Por Isabela Gaglianone

Cena da peça “La beauté del diable” com o ator Koffi Kôkô, apresentada no Brasil em 2012.

O livro Tragédia moderna, do crítico Raymond Williams, pensa a permanência do trágico após o fim da tragédia clássica. Williams, que foi um dos mais influentes pensadores e críticos da “Nova Esquerda” inglesa, pontua com os universos romanescos de Tolstói e D. H. Lawrence sua análise das obras de alguns dos grandes dramaturgos modernos e contemporâneos: Tchekhov, Pirandello, Ionesco, O’Neill, Beckett, Camus, Sartre e Brecht.

O autor amplia o conceito de tragédia, que, segundo diz, “chega a nós a partir da longa tradição da civilização européia”. Ele analisa: “Tendo separado sistemas trágicos anteriores das suas sociedades reais, levamos a cabo uma similar separação na nossa própria época, tomando como lógico que a tragédia moderna possa ser discutida sem referência à profunda crise social de guerra e revolução, no meio da qual todos nós temos vivido. Esse tipo de interesse é comumente delegado à política ou, para usar o jargão, à sociologia. Tragédia, dizemos, pertence a uma experiência mais profunda e mais íntima, ao homem e não à sociedade”. O conceito de tragédia insere-se na individualidade subjetiva, mas também em uma cultura e história específicas e, de acordo com Williams, relaciona-se ao esfacelamento da moral humana. Desenvolvendo essa análise, ele chega ao que entende como a nova visão da tragédia: relacionada ao desenvolvimento humano, articula-se à história e à crise ética. Para ele, “a sociedade é que se constitui, inevitavelmente, da soma dos seus relacionamentos, e quando estes estão perversamente errados, ou quando as pessoas não mais os compreendem, há uma complicada estrutura de culpa e ilusão que é vivenciada em cada setor da experiência, assim como nos mais óbvios pontos de confluência”. Williams identifica a formação do seguinte panorama: “Antes, não conseguíamos reconhecer a tragédia como crise social; agora, comumente, não conseguimos reconhecer a crise social como tragédia. A nova ideologia se apropria dos fatos da desordem e cancela o sofrimento no momento em que encontra o nome de um período ou fase. Da noite para o dia podemos transformar tudo em passado, porque acreditamos no futuro. O nosso presente verdadeiro, no qual a desordem é radical, está tão eficazmente escondido como quando era meramente política, porque agora é apenas política. Saltamos, ao que parece, de uma cegueira para a outra, e com a mesma confiança visionária. As novas conexões enrijecem-se e não mais conectam. […] Rebelião tornou-se revolução, e os mais importantes valores humanos foram associados, não com a ordem herdada, mas com desenvolvimento, progresso e mudança. O contraste entre as idéias usuais de tragédia e revolução pareceu definitivo. A revolução assegurava a possibilidade de o homem alterar a sua condição; a tragédia mostrava a sua impossibilidade e os conseqüentes efeitos espirituais”.

No texto de prefácio, “Tragédia no século XX”, Iná Camargo Costa contextualiza a obra: “Raymond Williams (1921 – 1988) escreveu cinco livros sobre dramaturgia. O primeiro, desenvolvimento de seu doutorado sobre Ibsen, de 1947 a 1949 em Cambridge, foi publicado em 1952, com o título Drama from Ibsen to Eliot. O segundo, uma espécie de antologia de história do teatro, é Drama in performance, de 1954. Tragédia moderna é de 1966, ao qual se seguiram em 1968 Drama from Ibsen to Brecht e a edição revista, com acréscimos fundamentais, de Drama in performance. O título do quarto sugere também tratar-se de edição revista do primeiro, mas deve ser considerado um outro livro, uma vez que o argumento central ali se encontra totalmente modificado e essa alteração já começara ao menos a se esboçar no livro anterior, este que nos interessa agora”. Segundo ela, “Tragédia moderna corresponde a um momento de inflexão no pensamento de Raymond Williams sobre o teatro e esta, como ele mesmo explicou, deve-se fundamentalmente à percepção do papel de Brecht na história do teatro moderno. Resumindo bastante: neste livro, pela primeira vez, o dramaturgo passa a fazer parte de corpus, mas de tal modo que em seguida ele se sentiu obrigado a rever o próprio argumento central de seu primeiro livro – uma crítica conservadora ao naturalismo […] – e, no segundo a dar espaço para experimentos não contemplados. É que Brecht não pode ser considerado apenas mais um autor numa dada série de dramaturgos modernos, pois constitui um ponto de vista a partir do qual é possível avaliar todo o conjunto da experiência moderna”. Costa pontua que “Raymond Williams começou a escrever em resposta a uma espécie de febre que tomara conta da academia britânica: George Steiner e seguidores, apoiados em problemática leitura de Nietzsche (e Schopenhauer), haviam decretado a impossibilidade da experiência trágica nos tempos modernos e, para não perder as prerrogativas acadêmicas,  costumavam reagir com violência (verbal, é claro) aos usos inadequados do adjetivo “trágico”. […] A academia, explica ele, não considera trágicos acontecimentos como guerra, fome, trabalho, tráfego, política. Isso equivale a não ver neles conteúdo ético ou ação humana consciente”.

Segundo a Profª Drª Rosemari Bendlin Calzavarai, em artigo apresentado no XII Congresso Internacional da ABRALIC: “A tragédia será sempre um conflito insolúvel, resultado do choque entre um mundo que conhece apenas o relativo, o mais ou menos, e um universo dominado pela exigência de valores absolutos, de totalidade e dirigido pela lei do tudo ou nada. A tragédia trata o herói como agente e como paciente. Ao mesmo tempo que este herói realiza, ele recebe a ação. Daí os resultados finais de uma personagem trágica estarem atrelados à loucura, ao suicídio, à mutilação. A ação de uma tragédia é tensa, lógica, presa a um nó, ou seja prende-se àquela situação inicial que resulta no sucesso ou insucesso do que se pretende e que culmina com o desfecho. Esta tensão provocada pelo trágico culmina com a catarse ou o efeito da purificação ou descarga das emoções. Este alívio das tensões vem acompanhado do reforço de algum aspecto da condição humana que passou pelo horror, a morte ou a destruição. […] O homem moderno não deseja destruir as instituições tradicionais, mas quer restabelecê-las em bases mais sólidas, menos contraditórias. A dramaturgia com base na crítica social é de grande valia neste processo. […] Na tragédia moderna os fins são mais pessoais e os interesses dirigem-se não mais para as necessidades éticas, mas para o indivíduo isolado e suas condições de vida. Na tragédia antiga a resolução do conflito se dá pela derrocada da pessoa para a realização da justiça eterna. O indivíduo abre mão da sua vontade pessoal para atender um comando mais alto. Embora o herói grego também agisse conforme sua individualidade, na tragédia clássica esta individualidade se confunde necessariamente com o princípio moral. É a justiça eterna que, como força absoluta do destino, assegura o acordo entre a substância moral e as forças particulares que entram em choque e ao final se apresentam como espetáculo dos indivíduos que se autopunem. […] segundo Raymond Williams, o resultado da tragédia moderna produz mais uma teoria psicológica do que uma teoria ética da tragédia. “Não é a justiça eterna, no sentido hegeliano, que é afirmada na questão trágica, mas antes o movimento geral da história, numa espécie de transformações decisivas da sociedade” (WILLIAMS, p.57). A tragédia só acontece quando há transformações sociais decisivas, quando há um movimento da história, entretanto, nem todos os conflitos geram o sentido trágico. Este só ocorre quando no embate de uma ação contraditória os dois lados opositores se recusam a ceder. As ações dentro da chamada tragédia moderna são, a um só tempo, necessárias e completas.  As contradições não se evitam: desenvolvem-se, ao se abrir caminho para a explicitação dos seus momentos polares e da unidade entre eles. Não há mediação entre arte e sociedade. Há mediação da sociedade na obra artística. Componentes fundamentais do processo histórico-social no interior do qual a obra foi produzida estão incorporados nela, no enunciado da forma e no enunciado do conteúdo. […] Depreende-se desta tragédia o que Raymond Williams considera “a dor inexprimível, o lamento da humanidade, o triunfo do mal, o desdenhoso domínio do acaso, a irrecuperável degradação do justo e do inocente”

Traduzido pela professora da USP Betina Bischof, o livro conta com prefácio de Iná Camargo Costa e faz parte da coleção “Cinema, Teatro e Modernidade”, da editora CosacNaify, coordenada por Ismail Xavier.

A editora disponibiliza uma visualização do livro.

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Para que haja uma genuína ação trágica é essencial que o princípio de liberdade e independência individual, ou ao menos o princípio de autodestruição, a vontade de encontrar no eu a livre causa e a origem do ato pessoal e de suas consequências já tenha sido despertada.

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TRAGÉDIA MODERNA

Autor: Raymond Williams
Editora: CosacNaify
Preço: R$ 48,30 (272 págs.)

 

 

 

 

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