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Cosmopolítica do sonho

22 fevereiro, 2016 | Por Isabela Gaglianone
Rosie Tasman Napurrurla, Warlpiri 2002, Ngurlu Jukurrpa (‘Semente de grama; grão de arbusto em sonho"’). Warnayaka Art Centre, Lajamanu, and Aboriginal Art Prints Network, Sydney

Rosie Tasman Napurrurla, Warlpiri 2002, Ngurlu Jukurrpa (“Semente de grama; grão de arbusto em sonho”). Warnayaka Art Centre, Lajamanu, and Aboriginal Art Prints Network, Sydney

O interessante pensamento antropológico de Barbara Glowczewski pôde ser conhecido pelo leitor brasileiro no ano passado, com Devires totêmicos— Cosmopolítica do Sonho. O livro percorre sua trajetória intelectual e reúne onze textos de sua autoria, dentre os quais inclusive as profícuas e estimulantes discussões que travou com o psicanalista Félix Guattari, em seus seminários[i] no início da década de 1980.

Parte do livro perpassa as instigantes análises baseadas na observação do povo Warlpiri do deserto central australiano – objeto de estudo da antropóloga há mais de trinta anos – e a sua cartografia totêmica que, baseada nos sonhos, constitui seus territórios existenciais nômades através de desenhos corporais ou danças rituais. Em um dos ensaios, sugere relações entre suas análises e narrativas com as linhas de errância de Deligny. Há ainda textos que dialogam com conceitos abrangentes da antropologia e da filosofia, como o perspectivismo de Viveiros de Castro e a ecosofia de Guattari, abrindo seu leque de discussão para questões cosmopolíticas extremamente atuais. 

Sobre comunidades aborígenes ameaçadas de destruição no deserto, no artigo “Entre o espetáculo e a política: singularidades indígenas”, Barbara Glowczewski diz: “Graças ao povo aborígene, eu pude experimentar uma forma de memória associativa que funciona como uma rede viva: suas diferentes conexões são ativadas a cada performance ritual, quando homens e mulheres pintam seus corpos, cantam e interpretam, através da dança, uma complexidade de sentidos. Esses sentidos são atualizados em alianças passadas e presentes, mas também em uma emoção estética e espiritual que parece impulsionar todos os participantes para um futuro como o surgimento de uma ‘possibilidade’, que é ao mesmo tempo interna e externa, a expressão da intersubjetividade de todos: uma exibição de identidades com múltiplas polaridades, tensões e atrações, conjunções e disjunções de alteridades, resultando em uma rede dinâmica e aberta”. A antropóloga conta que, no norte e centro da Austrália, “na tradição do povo do deserto, todos os homens e as mulheres têm de saber pintar desenhos que identifiquem os seus próprios seres espirituais, os Sonhos (Dreamings) de seus antepassados totêmicos – animais, plantas, chuva ou fogo. Esses sonhos ligam cada pessoa e fazem dela um irmão ou irmã daquela espécie de quem recebem o nome, e também as ligam à terra que esses ancestrais marcaram em suas jornadas. O objetivo é pintar no corpo dos homens e mulheres de seu grupo as etapas das viagens desses ancestrais, que são como mapas mnemônicos do surgimento de diferentes lugares nomeados através de marcações geográficas das ações ancestrais: poços, colinas, rochas. A arte, nesse sentido, é parte integrante de uma relação com o mundo ancorada nos lugares; a primeira geração de artistas aborígenes pintou telas para usá-las como uma ferramenta olítica, a fim de transmitir essa mensagem espiritual e existencial”.

Ainda no mesmo artigo, Barbara Glowczewski analisa: Realizar eventos no presente, com referência aos antepassados, coloca os performers e seus ancestrais em uma nova configuração reticular que reafirma a agência social de todos os atores envolvidos e mostra como a memória ancestral é compartilhada. A fixação de um universo social dinâmico em referências ritualizadas é exemplo de um processo de atualização que ressoa com o tipo de agenciamentos definido por Félix Guattari, que propõe uma matriz que articula múltiplas intersubjetividades. A atualização em ritos de alianças políticas também ilustra as teorias performativas do ritual e a definição de cognição de Varela como ‘enação’: ‘ação efetiva: história do acoplamento estrutural que faz emergir um mundo’. O ritual é uma ferramenta para enação e produção de intersubjetividades, não só através da performance, mas também através da interpretação e da transposição dos sonhos que, entre os povos aborígenes, gera novas danças e canções. Quando os povos indígenas perdem seus rituais, eles perdem uma ferramenta de compreensão do mundo, algo sem o qual eles podem desestabilizar-se: os missionários compreendiam isso muito bem quando proibiam os aborígenes e outros povos indígenas de continuar suas vidas de rituais e obrigavam-nos a destruir os seus objetos sagrados”. A pesquisadora contextualiza conceitualmente a noção ficcional do sonho, que não é algo passado, mas uma vívida realidade diária: “O conceito aborígene de Sonho (Dreaming) pode ser entendido não como sonho em oposição à realidade, mas como o virtual em uma relação dinâmica com o atual. Nesse sentido, sonho, memória, história e passado, todos pertencem ao virtual, que é uma dimensão sempre presente uma vez que virtualiza suas potencialidades no ambiente: por exemplo, diz-se que as crianças, bem como os jovens de todas as espécies, ou os ventos e a chuva ‘esperam’ para se manifestar: todos já estão virtualmente ali, mas precisam ser atualizados por meio de uma performance”.

A investigação da autora, que perpassa a relação entre antropologia a psicanálise, dialogando sobretudo com Guattari, presente no livro aqui em questão, foi em parte exposta em um curso no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFSC, “Antropologia e Psicanálise – contribuição do pensamento de Guattari”, que ela ministrou em 2013. Num dos movimentos expositivos do curso, propôs, debatendo com Claude Mercie, da Escola Lacaniana de Psicanálise da França, e com o professor Peter Pal Pelbart, da PUC-SP, também especialista em Guattari, uma instigante relação entre a sua perspectiva teórica e pragmática com a de Fernand Deligny, principalmente no que diz respeito ao estatuto dos mapas, ao complexo das linhas erráticas/ território, linhas de fuga/desterritorialização, à errância e à deriva, ligadura e rizoma; fazendo, de maneira ampla, uma geoanálise e uma esquizoanálise. A reflexão dos três especialistas, como propunha o programa do curso, prolongou-se, em direção a temas como o controle do ver e se ver, em relação a este ver (debatendo com Holmes), ou o estatuto do dentro/fora (diálogo com Sloterdijk), ou, mais amplamente, a complexa gama de relações estabelecidas entre o humano/a vida nua/uma vida (confrontadas por Deligny, Agamben, Deleuze)[ii].

Um dos pontos de inflexão antropológica da análise de Guatarri que interessa particularmente à autora é sua consideração sobre as oposições entre natureza e cultura, sujeito e objeto, que pressupõem uma medida humana ao cosmos, feita pelo filósofo à guisa da questão do descentramento da subjetividade, separada da própria condição de humano. Diz Guattari: “De certo modo ocorreu um descentramento da subjetividade. E hoje me parece interessante voltar a uma concepção, eu diria, animista da subjetividade, repensar o Objeto, o Outro como podendo ser portador de dimensões de subjetividade parcial: se for o caso, através de fenômenos neuróticos, rituais religiosos ou fenômenos estéticos por exemplo. De minha parte, não preconizo um puro e simples retorno a um irracionalismo. Mas me parece essencial compreender como a subjetividade pode participar de invariantes de escala, ou seja, como ela pode ser ao mesmo tempo singular, singularizada num indivíduo, num grupo de indivíduos, mas também ser suportada por agenciamentos espaciais, arquitetônicos, plásticos um agenciamento cósmico inteiramente outro. Como a subjetividade se encontra ao mesmo tempo do lado do sujeito e do objeto, portanto. Sempre foi assim. Mas as condições são diferentes em razão do desenvolvimento exponencial das dimensões tecnocientíficas do ambiente do cosmos”. Para Glowczewski, “se as pessoas estão interessadas em Félix hoje, é precisamente porque ele define a subjetividade através de agenciamentos no interior dos quais humanos podem estar tanto com outros humanos como com outros coletivos, com conceitos, animais, objetos, máquinas…”.

Em um comentário de Guattari sobre o tema do ritual, vê-se sua concepção do agenciamento coletivo, ou maquínico, de enunciação e da potência do uso não-metafórico de signos e palavras. Diz ele: “[…] a ‘mágica’ primitiva é ilusória. É o modo de ver dos etnólogos. Os povos primitivos são realistas, não místicos. O imaginário e o simbólico são reais. Não há além-mundo. Tudo se prolonga em tudo. Sem rupturas ou separações. Bambara não imita, não usa metáforas, não indexa. Sua dança e sua máscara são signos plenos, signos totais, que são ao mesmo tempo representação e produção. Ele não assiste à performance impotente. É ele mesmo, enquanto coletivo, o espetá- culo, o espectador, o palco, o vilão etc. Ele se transforma através da expressão, como um signo conectado à realidade. Ou antes, um signo que não dispõe de qualquer ruptura entre uma realidade e um imaginário mediado por uma ordem simbólica. Nenhuma ruptura entre gesto, discurso, escrita, música, dança, guerra, homens, deuses, sexos etc”. Como constatam a artista grega Angela Melitopoulos e o sociólogo italiano Maurizio Lazzarato, que desenvolvem, há anos, um projeto artístico em torno do animismo em Félix Guattari e que, para tanto, realizaram pesquisas e entrevistas com amigos e estudiosos de seu pensamento, reunidas e expostas no artigo “O animismo maquínico”: “Assim, há possíveis ressonâncias e cruzamentos entre rituais ancestrais atualizados no capitalismo contemporâneo e agenciamentos maquínicos, como o tematiza a antropóloga Barbara Glowczewski, que trabalhou com Guattari. Os rituais tomados como mecanismos de enunciação coletiva produzem corpos na medida em que fabricam uma enunciação. Mas tanto em um caso como noutro, não se trata de produções antropomórficas. O “coletivo”, como Barbara Glowczewski nos lembra, é irredutível a um agrupamento humano, é algo diferente de uma intersubjetividade ou simplesmente de um pertencimento ao social”. Segundo eles, o ritual, portanto, “assim como o agenciamento, é uma “máquina” que simultaneamente agencia fluxos cósmicos e moleculares, forças atuais e virtuais, afetos sensíveis e corporais, e entidades incorporais, mitos e universos de referência. Estes rituais e estas práticas culturais produzem uma subjetivação não identitária, em devir”.

Barbara Glowczewski é diretora de pesquisas do Centro Nacional para a Pesquisa Científica da França (CNRS), membro do Laboratório de Antropologia Social do College de France e professora na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). No Brasil, é conhecida sobretudo por coordenar o programa TransOceanik, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pelos cursos que oferece no programa Licenciaturas Indígenas, também na mesma instituição. Este é seu primeiro livro publicado em português.

A edição, bilíngüe, de Devires totêmicos, foi publicada pela editora n-1 e traduzida para o português por Jamille Pinheiro e Abrahão de Oliveira Santos.

 

devires

 

DEVIRES TOTÊMICOS — COSMOPOLÍTICA DO SONHO / TOTEMIC BECOMINGS  — COSMOPOLITICS OD THE DREAMING

Autor: Barbara Glowczewski
Editora: n-1
Preço: R$ 48,00 (352 págs.)

 

 

 

 

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[i] Pode-se conferir os seminários de Guatarri no blog “A navalha de Dalí”, do professor Murilo Duarte Costa Corrêa, professor de Filosofia Política da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas da UEPG.

[ii] cf. Programa do curso, divulgado na página da professora Miriam Grossi, no site da UFSC, com bibliografias, com como indicações de endereços de suas visualizações on-line, quando disponíveis.

 

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