Literatura

Crônicas ladeira-abaixo

7 abril, 2014 | Por Isabela Gaglianone

O Cristo empalado, de Marcelo Mirisola, é uma compilação de quase 40 textos – entre contos, crônicas e ensaios –, publicados originalmente no site Congresso em foco. No prefácio, Aldir Blanc observa: “Mirisola não economiza ofensas, não poupa os bem-pensantes tão em voga, mija nos que se julgam puros, esmerdalha os himmlers que se autoiçaram. Os textos, como o autor, são paradoxais: nos iluminam por suas sombras, nos redimem lançando maldições, nos lavam a alma ao enfiá-la de cabeça no pântano em que vivemos”.

Escrachado, sucinto e direto, Mirisola, na crônica que dá título ao volume, apresenta a tese de que é a cruz que carrega Cristo nas costas, e não o contrário: se ele tivesse sido empalado, “a Igreja e os seus subprodutos mais sórdidos simplesmente não existiriam”. 

Em entrevista publicada no Diário Catarinense, Victor Rosa perguntou ao escritor: “Em suas crônicas, os alvos vão desde Pedro Bial e Marisa Monte até Chico Xavier e Ivete Sangalo. Está muito difícil viver no Brasil?”, ao que Mirisola respondeu: “Viver no Brasil é broxante, sobretudo porque o tempo passa e os alvos continuam os mesmos”. Seguindo a entrevista, à pergunta “Chamam a atenção tantas crônicas sobre o tema religioso. Você relata o dia em que foi expulso de um terreiro por desafiar um exu, por exemplo, e confessa também que passou a acreditar em Deus por total falta de opção. Continua acreditando?”, sua resposta foi certeira: “Também chamaram minha atenção. Ocorre que no processo de seleção nem eu nem a editora notamos esse corte. Incrível, né? Parece que é o sobrenatural se manifestando. Com relação à falta de opção, eu faço uma proposição simples e lógica, que é a seguinte: se tem gente que vota e acredita no Kassab, por que eu – por absoluta falta de opção – não posso acreditar em Deus, gnomos e extraterrestres? Sigo firme e forte no meu credo. Eu e milhares de crentes acreditamos que Jesus voltará – resta saber se empalado ou numa nave espacial”.

Elias Fajardo, em resenha, analisa: “A linguagem é o grande trunfo de Mirisola, que neste caso vai além da caricatura e apreende com agilidade as comédias e os dramas humanos”.

Mirisola, com mais de dez livros publicados, sendo, como ele próprio diz, “dois geniais, um seminal, uns cinco acima da média e alguns meia-boca, porém indispensáveis”, vai da fina ironia ao humor escatológico. Sua literatura é política, realiza uma crítica inusitada e forte, amparada pela zombaria de um humor cásutico.

“Estou quase convencido de que existe vida além do óbvio”.

 

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Trecho:

Obituário

A primeira lembrança é a primeira dor. Já fazia parte dos planos, a dor e a lembrança juntas, depois virou uma combinação improvável do suor que encardia o encosto do sofá com o azul-piscina daqueles tempos. Também recordo amargamente das ruas de paralelepípedos e das sombras estendidas de uma castanheira que nunca deu frutos; logo em seguida tinha o alpendre e um corredor interminável que envelhecia crianças. Uma cornija servia improvisadamente de altar-nazi pra santa, iluminada por uma lâmpada vermelha que até hoje – depois de 43 anos – ainda não se apagou. Tudo ali. A lição e o castigo, mas sobretudo o conforto ou o final de linha para a criança transida que – já naquela época – tramava contra si mesma.

O primeiro tesão e o primeiro milagre embutidos numa lâmpada minúscula comprada no Bazar 13. Santa Rita de Cássia padroeira dos adúlteros. Era, afinal, a tecnologia e o sobrenatural de que dispúnhamos no começo dos 70’s. Também tínhamos um quarto reservado para os mortos.

Um viralata que me traía com os filhos da empregada também constava dos planos, lembro que o merdinha era todo branco. O ódio da empregada (que incluía os filhos) rivalizava com o ódio da patroa, e as duas estavam mancomunadas na cartilha que julgavam me ensinar. Elas se entendiam. Trabalho e exploração – mais por descuido do que por compaixão – significavam algo que ia muito além do fruto revirado em si mesmo. O amor tem razões e encaixes que até o conflito de classes desconhece. Nessa intersecção – quando ódio e amor se imiscuiam – eu contava apenas com o medo, as orações e os latidos do viralatinha traídor. — Da minha parte comia ovos, e fazia engordar.

Até que substituí os rancores (ainda muito verdes) por guardanapos xadrezes, e me concentrei nas dobras do sovaco da negra que me alimentava. A sacana me prendia numa espécie de cadeira-cocho, e minha cabecinha às vezes sumia dentro de suas carnes. Não foi difícil esquecer o cachorrinho. Nem foi tão complicado trocar o ódio pelo amor, e vice-versa.

Em seguida, passei a lamber a barra das cortinas. Creio que foi exatamente nesse ponto que – efetivamente – incorporei as lembranças ao esquecimento e à dor, se não fosse assim descreveria aqui os castigos que imaginei me autoinfligir atrás das cortinas. Isso acontecia (ou devia ter acontecido) toda vez que me obrigavam a engolir ovos cozidos e retribuir afagos por bom comportamento. Muito triste ter o registro vivo dos ovos cozidos, e contar apenas com uma vaga lembrança do sovaco da negra que me alimentava. Então, por exclusão (e pela primeira vez) relacionei o nome à pessoa. Relinchei vigorosamente. O nome que me foi dado para que – segundo o plano – para que eu pudesse me sabotar sem correr o risco de fazer qualquer tipo de aproximação e/ou reconhecimento, mas eu os fiz.

Eu era um garoto obcecado. Não obstante, a lâmpada que iluminava o altar-nazi da santa também me iluminou durante todos esses anos. O tesão só fez aumentar. Segui o plano: e aos milagres seguiram-se os dias, como se a estratégia e a rotina, e sobretudo a vida que me levou na enxurrada, não tivessem qualquer relação com meu desaparecimento exemplar. Fui enganado. Hoje sou mais um cara solitário do que agradecido. Isso quer dizer que eu poderia ser mais escroto do que sou. Talvez um serial killer ou um suicida impecável (lindo, jovem, brilhante etc.) caso não tivesse conseguido me alimentar das placentas que as lésbicas da casa ao lado – generosamente? – jogavam na direção da minha baia: adquiri a decrepitude por mérito próprio, e a inocência por viciada presunção.

Se me enganaram, também enganei. A areia dentro dos olhos esfola e atrapalha um bocado, mas além de pressentir os mataborrões amarelos e vermelhos, consigo enxergar nitidamente através dos coágulos que comprometeram a parte boa da memória. Além do incômodo provocado pelas minúsculas partículas de areia, os malditos coágulos subtraíram meu tesão… à guisa do tempo que perdi tentando decifrá-los.

Não foi só engano, pus e/ou cegueira voluntária. Não! A meu favor, conto com algumas epifanias e um céu fraturado, a vaidade retribuída e o pinto mole. Assumo algumas responsabilidades, e às vezes me divirto:

— As espumas de sangue que quebravam mansas na praia de São Vicente – por exemplo – eram trazidas pelas ressacas de uma alma penhorada e oleosa. A alma que me emprestaram.

Mas fui eu que manipulei meus algozes e manchei a praia de sangue. Sim, eu era a praia suja de sangue e piche, e era também o lixo que o mar devolvia junto às oferendas mais extravagantes e fraudulentas, além disso, eu possuía o dom de antecipar os baques e os gritos suspensos no ar. Engolia tudo a seco, e lambia os beiços.

Quem mais conseguiria realizar o final trágico e cinematográfico?

Planejei tudo, desde o começo até o momento em que consegui comprometer meu último dia. Um acidente náutico. A explosão marítima. Um sonho de criança-playboy. Ninguém jamais iria desconfiar, mas fui eu o responsável pela colisão. Que espetáculo! Morrer num “acidente náutico” foi o único plano honesto que – enfim – consegui participar ao longo de toda a vida. Quando joguei a lancha sobre as pedras.

MM, 1966-2013

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O CRISTO EMPALADO

Autor: Marcelo Mirisola
Editora: Oito e meio
Preço: R$ 32,30 (215 págs.)

 

 

 

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