Atendendo a pedidos dos leitores, propomos aqui uma continuação desta rota bibliográfica, somente uma das possibilidades de navegação do mar comum que nos é a história.
Os Anais são a obra mais representativa da maturidade intelectual do historiador Tácito, escrita entre o principado de Trajano e o de Adriano. Sua relevância estende-se da tradição historiográfica latina à formação do pensamento político ocidental.
A ênfase primária nos Anais recai sobre a narrativa das ações dos imperadores e na progressiva caracterização analítica biográfica de cada um, recurso utilizado por Tácitopara enfatizar o caráter praticamente monárquico do Principado. Sua narrativa histórica, pois, centra-se na figura do imperador e na cidade de Roma. A estrutura dos livros, considerada de maneira ampla, é fundada sobre blocos de caracterizações que formam uma continuidade entre si, cuja dinâmica forma um diálogo em que o processo de deterioração moral do Principado se torna gradualmente evidente.
Um trecho interessante é a passagem em que Tácito descreve o discurso de Nero no funeral de Cláudio, usando as palavras escritas por Sêneca – o historiador enfatiza que esta fora a primeira ocasião em que um imperador a precisou de alguma outra pessoa para lhe fornecer a retórica de um discurso:
“Os mais idosos, cuja distração era comparar as coisas antigas com as novas, repararam que Nero era o primeiro imperador que teve necessidade de se servir da eloquência alheia. Pois o ditador César rivalizava com os maiores oradores; e Augusto tinha pronta e fluente a eloquência necessária a um imperador. Tibério era um mestre em medir as palavras, quando queria expressar vigor, ou quando era deliberadamente ambíguo. Mesmo a mente perturbada de Calígula não corrompeu sua fluência. E quando Cláudio discorria sobre seus assuntos, a elegância não lhe faltava. Mas Nero, desde a sua infância, voltou sua mente inquieta para outros interesses: esculpia, pintava, cantava e conduzia os cavalos, e às vezes compunha versos, mostrando ter alguns rudimentos de cultura”.
Segundo Juliana Bastos Marques, professora adjunta da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro [UNIRIO], é possível fazer uma “uma leitura dos Anais baseada na análise dos recursos retóricos ligados às regras da tradição historiográfica latina da forma como foram sutilmente adaptados por Tácito, por conta de sua necessidade de ênfase nas ações e no caráter dos imperadores. Com isso, podemos perceber a construção de uma sucessão relativamente linear de degeneração dos imperadores – e, por conseguinte, do próprio império –, que culmina com Nero (e posteriormente na guerra civil dos primeiros livros das Histórias)”
O que nos leva a outra obra de Tácito, escrita em sua juventude, o Diálogo dos oradores, que põe em questão os papéis políticos da oratória e dos oradores e a importância social e cultural da poesia, necessariamente complementar às outras áreas de conhecimento que concernem à formação do cidadão. Tácito analisa sobretudo a “decadência” da oratória e da eloquência, relacionando-a à decadência das instituições de ensino e práticas pedagógicas aplicadas à formação do orador.
O Diálogo dos oradores possui uma tradução para o português, feita por Júlia Batista Castilho de Avellar e Antônio Martinez de Rezende e publicada pela editora Autêntica. De acordo com a análise de Fábio Duarte Joly, em artigo, o Diálogo “possibilita uma avaliação da concepção de História de Tácito, em paralelo com suas outras obras, como as Histórias e os Anais”, baseada nas relações candentes entre retórica e história. Para o crítico, a obra “está intimamente relacionado ao restante da obra taciteana, não sendo apenas uma reflexão sobre literatura”.
Segundo o crítico Antonio Gonçalves Filho, em artigo escrito para o jornal O Estado de São Paulo, de “todos os escritores da Antiguidade, não há nenhum mais moderno que Petrônio. O comentário é do surrealista francês Raymond Queneau (1903 -1976) e diz respeito ao clássico Satyricon, que ganha nova tradução com título aportuguesado para o Brasil (Satíricon, de Cláudio Aquati, editora Cosac Naify) […]. ao relatar a jornada de Encólpio e seus companheiros Ascilto e Gitão pela Roma de Nero, Petrônio parece ter antevisto a zona do mundo globalizado nos bordéis do Império Romano. Cruzam o caminho de seu trio de vagabundos alguns ex-escravos que em tudo se assemelham aos novos -ricos do terceiro milênio – bárbaros sem pátria, hedonistas dispostos a tudo e, antes de mais nada, orgulhosos de sua ignorância. Formam, sem exagero, um exército de clones de Trimalquião, o ex-escravo romano de Petrônio subitamente elevado à categoria de cidadão e proprietário de terras”.
Trata-se de uma sátira notável dos tempos do imperador Nero. Da obra completa restaram senão fragmentos, dentre os quais o mais notório é o “Banquete de Trimalquião”, uma cena detalhada de um jantar luxuoso, extravagante e decadente.
Satíricon é um dos mais antigos romances conhecidos. Realiza uma crônica do cotidiano da Roma Imperial à época de seu maior fausto econômico, que coincide com excessos de liberalidade nos costumes e decadência cultural e política. Foi escrito por Petrônio entre 62 e 66 d.C. A presente edição é o resultado de uma remontagem a partir da reunião dos textos fragmentados. A forma fragmentada, porém, não fez com que a obra perdesse sua força plástica e encanto literário – a fascinação que exerce vem perpassando gerações de escritores e historiadores, de Tácito a Boccaccio, de Proust a Nietzsche.
A trama narra as aventuras de Encólpio e Gitão pelo sul da Itália, nas imediações de Pompeia e Nápoles. Encólpio, jovem estudante bissexual, profana o culto de Priapo, incitando sua ira. Priapo castiga-o inspirando-lhe um ciúme doentio e uma intermitente impotência sexual. Encólpio conhece Gitão, um adolescente afeminado e volúvel, por quem se apaixona. Embora tenham intenção de expiar a ofensa feita ao deus, os dois cometem excessos e pequenos golpes em suas andanças pelo mundo romano, envolvendo-se em triângulos amorosos, num ambiente de vagabundos, sacerdotisas alcoviteiras e novos-ricos grosseiros, obcecados por sexo e prestígio.
Considerada uma das obras mais importantes da literatura mundial, foi objeto de comentário do crítico Auerbach, no seu célebre Mimesis, quanto ao seu realismo original, enquanto representação da realidade e representação linguística. Petrônio delega a narração diretamente a seus personagens, escrito em primeira pessoa pelo protagonista Encólpio; o procedimento, diz Auerbach, produz uma ilusão de vida mais sensível e concreta.
Quando escreveu a Eneida, no século I a.C., Virgilio já era famoso por suas Bucólicas, poema escrito em 37 a.C., e pelas Geórgicas, escrito em 30 a.C. A Eneida [Aeneis] é um poema épico que narra a saga de Eneias, troiano salvo dos gregos em Troia e que, errante, atravessa pelo Mediterrâneo até chegar à península Itálica e tornar-se o ancestral de todos os romanos. A obra foi encomendada pelo imperador Augusto, para que cantasse sua grandeza e exortasse a origem e o espírito romanos.
Virgilio começou a escrever a Eneida em 29 a.C., mas a obra só foi publicada após sua morte, dez anos depois. É comum a associação que equipara a importância, enquanto legado poético histórico, da Eneida para o mundo romano, à da Odisseia e da Ilíada para o mundo grego. Virgilio, através do périplo de Eneias, das ruínas de Troia à gênese da civilização romana, realiza aqui um inventário dos mitos, da relação moral entre paixões e deveres, das relações éticas que rege os laços sociais; cria um passado coletivo, concepções comuns de mundo, de tempo, de afetos e história.
Esta edição, revista e ampliada, traz a história da descida de Enéias ao inferno através da primeira tradução feita por Odorico Mendes, junto com suas posteriores notas. O volume conta com um minucioso estudo de apresentação do prof. Antonio Medina Rodrigues, glossário de nomes próprios e notas de Luiz Alberto Machado Cabral, além de mapas e árvore genealógica da Grécia e de Tróia, instrumentos para a compreensão do texto, do respectivo contexto histórico e do processo de tradução. A “gesta da Eneias” é traduzida por Carlos Alberto da Costa Nunes – tradução que foi publicada a primeira vez em 1981. A edição, bilíngue, é organizada por João Angelo Oliva Neto, professor no departamento de Letras Clássicas da USP, e conta ainda com um resumo das ações de cada um dos doze cantos da obra.
Dante elegeu Virgilio como seu guia na Divina Comédia. O escritor T. S. Eliot afirmou: “Virgílio tem a centralidade do clássico único; está no centro da civilização europeia, numa posição que nenhum outro poeta pode compartilhar”. O austríaco Hermann Broch concebeu, em 1938, durante as cinco semanas em que foi preso pela Gestapo, A morte de Virgílio, considerado por muitos críticos como sua obra-prima, certamente um marco na literatura do século XX. No romance, Broch recria as dramáticas últimas dezoito horas de Virgílio, nas quais ele cogita destruir a Eneida, obra de sua vida. Construído por sonhos, pensamentos e falas do próprio poeta, a narrativa desenvolve-se enquanto um complexo fluxo de consciência, que delineia os dramas existenciais e estéticos do artista diante da morte. No império romano do tempo de Augusto, Broch vê um paralelo com o iminente nacional-socialismo de Hitler.
O pesquisador Pierre Grimal (1912-1996) foi membro da École Française de Rome e professor de literatura latina da Universidade de Paris IV – Sorbonne. É autor de inúmeros estudos que são referências fundamentais no estudo histórico, cultural e literário da antiguidade romana. Em seu A civilização romana, ele reconstrói aquele momento da História da Humanidade e mostra o quanto somos herdeiros dos povos do Lácio, uma das civilizações fundadoras de toda a cultura ocidental. Das lendas e realidades dos primeiros tempos, passando pela fase da República e, posteriormente do Império, o livro perpassa o lado mais prosaico da vida e costumes daquela sociedade.
Um dos pontos interessantes que Grimal levanta é a importância simbólica, cultural e política, da padronização da arquitetura monumental e do planejamento das cidades: instrumento fundamental para a “romanização” dos povos conquistados. Os romanos preocupavam-se em reproduzir, nas cidades provinciais, o modelo de sua capital, construindo réplicas das edificações e distribuindo-as ao longo das cidades à guisa de como eram feitas em Roma.
Suas táticas de territorialização iam, portanto, desde o inicial domínio militar até a utilização das políticas de “romanização”, que incluíam também a introdução de costumes romanos – tradições, religião. Sobre a padronização urbanística e arquitetônica, que possibilita uma leitura geohistórica do Império Romano, Grimal diz:
“Se, de fato, o poder militar dos povos subjugados por Roma foi quebrantado pelas legiões, foi a cidade romana que – pelo menos nas províncias ocidentais – assegurou a ‘romanização’ do território conquistado. Os romanos não se deixaram induzir em erro e serviram-se do seu urbanismo como de um poderoso instrumento político”. Segundo o historiador, porém, em Roma, o crescimento das atividades econômicas e políticas, bem como o crescimento populacional, trouxeram à cidade graves problemas de ordem urbana: “O problema principal que então se passa a pôr aos Romanos é menos o de construir edifícios públicos do que o de encontrar espaços livres. Roma tinha permanecido uma pequena cidade ao mesmo tempo que se tornava capital de um imenso Império. O número dos seus cidadãos tinha crescido desmensuradamente mas os instrumentos da vida pública continuavam ainda, no fim da República, a ser aquilo que eram dois séculos antes”. Sobre a especificidade de Roma, há, no Brasil, uma tradução cuidadosa da obra de Grimal História de Roma, em que o autor se debruça sobre a trajetória desta cidade que dominaria a Europa e partes da Ásia e da África.
Com o historiador Paul Veyne lembramos que uma reflexão sobre o estatuto da verdade aponta para uma dificuldade da explicação histórica, que pode explicitar fatos e historicizar noções – tais como o Estado, o poder, a religião – porém, como diz o historiador, a narrativa histórica contém sempre uma subjetividade que interfere na história como “lição” e verdade. Segundo Hume, na história, a inteligibilidade dos fatos é dependente, quase exclusivamente, da maneira pela qual o historiador os dispõe, de como ele situa os efeitos em relação às causas, do ponto que ele toma como partida, da meta que ele estabelece como chegada da narrativa; comentando esse ponto, o professor Pedro Paulo Pimenta, em artigo, comenta: “É por obra desse trabalho expositivo, que cabe à imaginação, que a razão conseguirá, enfim, formular leis gerais em que a constância dos fatos transparece por trás do véu das circunstâncias”.
É nesse sentido que se pode tomar as duas grandes civilizações antigas, a grega e a romana, como, em larga medida, causa e origem da nossa própria civilização.