Glória, romance de Victor Heringer, mistura humor e ironia para narrar a saga da família Costa e Oliveira e as aventuras e desventuras dos irmãos Abel, Daniel e Benjamim, respectivamente um pastor, um burguês e um artista, que, após a morte do pai, guardam como sua herança nada mais que a prontidão a nunca perder uma piada. O livro, finalista do Prêmio Jabuti no ano passado, traça uma ponte entre os séculos XIX e XXI, criando uma (meta)ficção que vai de referências a Machado de Assis a questões inerentes à internet, passando pelo café Aleph e suas figuras virtuais. O autor é hábil no uso, com uma prosa fluente, de um amplo repertório de recursos estilísticos aliado a um leque de referências literárias.
Benjamim, que vive em busca de uma mulher impossível, frequenta um café virtual em que cada participante adota o nome de algum filósofo ou escritor famoso, proporcionando aos encontros e diálogos um caráter bastante inusitado. Suscita uma interessante relação entre temas contemporâneos e a perpetuação, ressoando de certa forma uma pergunta feita entre personagens: “A senhora não tem medo de ter vivido para nada?”.
O autor desenvolve atualmente um trabalho de plural diálogo entre a literatura e outras linguagens, como a criação musical e audiovisual, a respeito do que, em entrevista, disse: “O diálogo tende a arejar a linguagem. A princípio, isso significa que as técnicas empregadas nas várias práticas artísticas se inspiram, que uma inova a outra e assim vamos marchando com nossos quepes de vanguardinhas. Mas não se trata somente de técnica. Ao editar um vídeo, por exemplo, estou pensando a literatura, seu ritmo, suas especificidades, até mesmo sua função social. É preciso se deslocar para pensar – pouco adianta pensar literariamente a literatura (além de ser um tanto monótono). Gosto de quem a pensa musicalmente, escultoricamente, ciberneticamente, culinariamente, pervertidamente… até estupidamente. É mais produtivo pensar estupidamente a literatura do que pensá-la literariamente”.
Em resenha, Victoria Saramago, doutora em literatura pela Universidade de Stanford, pontua: “O recurso à metaficcionalidade, desenvolvida pesadamente no prólogo, no epílogo e nas muitas notas de pé de página, já nos dá uma ideia de alguns dos traços pós-modernos de que o livro é às vezes adepto, às vezes vítima”. De acordo com sua análise, “a intensa intertextualidade com a obra de Machado de Assis” pode ser vista como influência decorrente de que “Heringer trabalhou por anos na Casa de Rui Barbosa, significativamente editando belas versões em hipertexto dos romances de Machado e revisando artigos para a revista Machado de Assis em Linha”. Para Victoria Saramago, neste “misto de temáticas contemporâneas, referências à obra machadiana e múltiplas tramas, a linguagem do livro emerge como um aspecto problemático mas com certo potencial. […] Heringer cultiva uma prosa que mais se assemelharia a algo do século XIX, ou até antes […]. Estendido às mais de 250 páginas do romance, esse estilo ganha um efeito um tanto particular”. A chave de leitura a esta opção estilística deve ser a ironia, de acordo com a crítica, “uma reapropriação irônica de formas do passado com o objetivo de criar um efeito de singularidade notadamente indiferente a qualquer ideia de praticidade e economia”.
Segundo Vinícius Justo, em resenha, “Glória poderia muito bem se chamar Ironia. O objetivo último de quase todos os personagens parece ser se transformar em uma ironia de si mesmo e de suas experiências, ainda que por caminhos totalmente diversos”. Porém, de acordo com sua análise, as “qualidades de Heringer estão menos na ironia fina e mais no humor nonsense, que funcionaria melhor sem os penduricalhos narrativos, que estão ali apenas para impressionar e acabam reduzindo a fatura estética da obra”.
A editora 7 Letras disponibiliza uma visualização do livro.
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Trecho:
O município de Santa Maria Madalena, além de ter o terceiro melhor clima do país, é muito silencioso. Portanto, quando o telefone da casa de d. Letícia tocou no meio da noite, até os vizinhos mais afastados ficaram sabendo que alguém tinha morrido, porque o telefone só toca assim de madrugada quando alguém morreu. Aqueles com maior capacidade auditiva e senso de direção mais apurado logo identificaram a casa que em breve estaria de luto, e dois deles murmuraram uma prece ao defunto antes de voltar a dormir. Quatro ou cinco, no entanto, excitados pela novidade, telefonaram para outros quatro ou cinco, que telefonaram para outros quatro ou cinco. Com o estardalhaço telefônico, o município inteiro acordou, e não demorou até que alguém ligasse para Conceição, a empregada –d. Letícia não conversava com ninguém–, para confirmar o boato. A velha respondeu com seu “ughrrum” característico, disse que podia ser um dos sobrinhos-netos, vestiu-se e foi ate o sítio. Nos dias seguintes, tentou desfazer o mal-entendido: dizia a quem encontrasse pelas ruas que ninguém da família de d. Letícia havia morrido. Mas, como não é um município tão pequeno, a notícia se espalhou e fincou raízes. Não adiantava desmentir. Benjamim, o sobrinho-neto, estava irremediavelmente morto para eles.
Quando d. Letícia atendeu, ainda esfregando os olhos, demorou a distinguir a voz de uma mulher abafada pelos gritos de um homem. Levou mais alguns segundos para entender quem eram. O homem pedia ajuda, dizia que Deus é, era, gago, nada era engraçado, nada era engraçado, nada era engraçado, nada era engraçado. A mulher também pedia ajuda, mas de forma coerente: sabia seu nome, sabia onde morava e que ela era a última das irmãs Costa e Oliveira. No entanto, só quando a voz disse que seu filho estava morrendo de desgosto, d. Letícia percebeu que eram seus parentes. Acendeu todas as luzes da casa, confirmando a funesta aposta dos vizinhos, e correu para buscar seus cadernos. Ninguém acende todas as luzes da casa no meio da noite, a não ser em caso de morte na família. A mãe foi enumerando os sintomas: febre alta, alucinações, choro convulsivo. Já na sala, com os cadernos a mão, d. Letícia ouviu o sobrinho-neto soltar uma gargalhada funda, como se estivesse conversando com belzebu e belzebu tivesse dito algo bastante curioso.
– Tomo três, seção cinco – disse de um estalo.
– O quê? “” perguntou a mãe
– Tomo… três… seção… cinco. Seção… seção… Aqui.
Todos os 35 cadernos, ou tomos, de d. Letícia estampavam o mesmo título nas capas: “Breve e Muito Concisa História da Família Costa e Oliveira”. Fruto de décadas de pesquisa, e à época com mais de 300 páginas, o trabalho consistia basicamente em anotar nome e causa mortis de todos os Costa e Oliveira com que se deparava em documentos históricos ou na memória, na própria e na dos outros. Além do nome, de uma pequena nota biográfica e da espécie de desgosto responsável pelo óbito, d. Letícia anexava em seus cadernos fotografias, recortes de jornal, anedotas e tudo que de mais relevante encontrava a respeito do defunto em questão. Após décadas de investigação obstinada, havia chegado até a origem da família e da doença, o primeiro Costa e Oliveira a aportar no país, um lusitano que, a julgar por seu diário pessoal, morrera do desgosto de ter que viver longe da amada. Em seu testamento, d. Letícia deixava instruções claras para que a inserissem no catálogo dos desgostosos, de modo que ficasse completo, como manda o bom senso metodológico.
Entretanto, ainda faltava organizar as anotações para escrever uma teoria geral do desgosto, sua suposta missão de vida, que classificaria todos os tipos de desgosto, seus sintomas e paliativos, além de explicar por que essa epidemia, já quase erradicada no país desde o condoído século 19, ainda corria larga no sangue dos Costa e Oliveira, matando com dó, mas sem piedade. Consideraria também a possibilidade de a epidemia cruzar as fronteiras da família e se alastrar pelo mundo novamente, como a peste bubônica. Segundo suas anotações, baseadas especialmente na obra do monge Mendel, isso estava prestes a acontecer. Caso nenhuma providência fosse tomada, o mundo inteiro se acabaria em suspiros desesperados.
Em 2007, quando d. Noemi telefonou no meio da noite para pedir ajuda, d. Letícia ainda não sabia exatamente que tipo de providência seria necessária para impedir que a peste se espalhasse. Por ora, entretinha a vaga ideia messiânica de que só um legítimo Costa e Oliveira seria capaz de salvar o mundo da doença, pois veneno com veneno se combate. Mas estava iniciando seus estudos epidemiológicos; era somente questão de tempo, portanto, até chegar a alguma conclusão sólida. O que d. Letícia não poderia prever, talvez em razão da prepotência advinda dos estudos científicos amadores, é que morreria, dois anos mais tarde, do desgosto de não ter concluído nada.
No caso do menino, porém, sabia perfeitamente o que fazer.
Seu sobrinho-neto era um desgostoso atrabiliário. Um melancólico. Os sintomas eram claros: estava com a pele enegrecida, tinha ardências no estômago, insônia e gritava porque ouvia um zumbido terrível na orelha esquerda. Na seção cinco do tomo três da “Breve e Muito Concisa História da Família Costa e Oliveira”, d. Letícia se detinha na figura do desgostoso melancólico, o tipo de desgostoso que sofre a vida inteira, aos pingos, contrariamente aos desgostosos explosivos, por exemplo, que morrem de um só golpe de infortúnio (rompimento amoroso, bancarrota, acidente doméstico, entre outros), ou aos desgostosos maníacos, que morrem por não saber o motivo de sua tristeza. […]
Deixando momentaneamente de lado a neutralidade típica do cientista, d. Letícia chegava a lamentar – no tomo 5, seção 3 – a sorte dos pobres Costa e Oliveira que nasceram desgostosos melancólicos. Eram condenados desde a mais tenra idade a sofrer de amargura, inveja, amoralidade, prisão de ventre, arroto ácido, sonhos macabros, histeria, demência, epilepsia, lepra, hemorróidas, misantropia, sarcasmo, sarna, esperteza e mania suicida. […] Como todos os Costa e Oliveira, o sobrinho-neto estava fadado a morrer de desgosto, mas seu caso era pior, pois morreria em banho-maria, de um desgosto ininterrupto. Poderia tentar abrandar as angústias, mas o rapaz deveria ter em mente que, até que se descobrisse a cura, o resultado final era inevitável.
Os paliativos recomendados por d. Letícia incluíam dormir de bruços, ingerir pouco sal, assistir muita TV, chá de bertalha ou de hortelã, fígado de ganso, diazepam, compressas mornas na testa, retenção do sêmen e um emprego burocrático. Aconselhasse também, disse a d. Noemi, evitar golpes de vento, música barroca, trufas, gengibre e qualquer atividade que estimule a memória:
– O que o seu menino precisa é esquecer de si mesmo; os desgostosos melancólicos são ególatras de maior marca. É a natureza deles. O melhor é que a senhora deixe ele em paz…
E, assumindo um tom profético:
– O grande problema não é a doença da família, mas o que ela vai fazer quando começar a se espalhar, Noemi querida, porqu–
D. Noemi desligou o telefone. Apesar de ter passado anos afastada das demais irmãs, d. Letícia tinha o mesmo desagradável habito de só chamar as pessoas de “querido(a)” quando estava prestes a dizer algo que ninguém queria ouvir.
(Trecho divulgado pelo jornal Folha de São Paulo no caderno Ilustríssima).
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Autor: Victor Heringer
Editora: 7 Letras
Preço: R$ 39,00 (292 págs.)