“Sem fazer monopólio, os loucos são da proveniência mais diversa, originando-se em geral das camadas mais pobres. São imigrantes italianos, portugueses e outros mais exóticos, são os negros, os roceiros, que teimam em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma esteira esmolambada e uma manta sórdida: são copeiros, cocheiros, moços de cavalariça, trabalhadores braçais. No meio disto, muitos com educação, mas que a falta de recursos e proteção atira naquela geena social”.
Em seu Diário do hospício, Lima Barreto documentou, de maneira impressionante, sua internação, entre o natal de 1919 e fevereiro de 1920, no Hospício Nacional dos Alienados, no Rio de Janeiro.
O autor foi por duas vezes internado em instituições psiquiátricas, por delírios alcóolicos; este relato, lúcido e profundo, refere-se à sua última internação, em 1919.
Algumas vezes editado no Brasil, o texto teve sua publicação mais recente pela Cosac Naify em 2010, em volume que também reunia o romance inacabado O cemitério dos vivos, que, ambientado também no hospício, transfere para a chave ficcional a experiência da loucura.
A edição, organizada por Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura, adverte não pretender-se crítica, porém é extremamente cuidadosa. O texto que serve como prefácio, o ensaio “O cemitério dos vivos: testemunho e ficção”, do crítico Alfredo Bosi, faz uma profunda análise histórico-literária da obra, abordando a partir dela temas que extrapolam as intenções originais do próprio texto. Segundo Bosi, “são raras as obras que possam valer como testemunhos diretos e coerentes de um estado de opressão e humilhação. Este é o caso do Diário do Hospício de Lima Barreto”.
Ambos textos foram originalmente publicados em conjunto, postumamente, em 1953, pela editora Mérito. Na edição havia uma breve nota introdutória de Francisco de Assis Barbosa, autor da importante biografia A vida de Lima Barreto, 1881-1922 [Rio de Janeiro: José Olympio, 1952; 9. ed., 2003]. O volume trazia o seguinte índice: Diário, Diário do hospício (apontamentos), O cemitério dos vivos (fragmentos) e Inventário da Biblioteca —, sendo a versão do Diário do hospício bastante reduzida.
Como contextualiza Maria Salete Magnoni, no artigo “Do diário ao romance: ficcionalizando uma experiência-limite”, publicado pela revista de literatura brasileira Teresa: “Em 04 de janeiro de 1920 começa a escrever o Diário do hospício, e uma de suas primeiras anotações é justamente sobre o poder que a nossa Primeira República conferia ao aparelho policial para decidir quem era meliante e quem era louco: “Não me incomodo muito com o Hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida”. No dia 31 do referido mês, em entrevista para o jornal A Folha, adianta ao repórter que pretende escrever um livro sobre os hospitais de loucos: “leia O cemitério dos vivos. Nessas páginas contarei, com fartura de pormenores, as cenas mais jocosas e as mais dolorosas que se passam dentro dessas paredes inexpugnáveis. Tenho visto coisas interessantíssimas”. O primeiro capítulo de O cemitério dos vivos foi publicado em janeiro de 1921 na Revista Souza Cruz (número 49), sob o título As origens e com o autor ainda vivo, mas Lima Barreto não concluiu o romance, pois faleceu pouco mais de um ano depois, em novembro de 1922”.
Magnoni, no mesmo artigo, comentando o prefácio de Alfredo Bosi, fala sobre a passagem das memórias à ficção: “Alfredo Bosi diz se impressionar com o efeito da “serena lucidez que sai das páginas escritas em um asilo de alienados” (p. 11), cuja prosa de andamento moderado, linguagem transparente e aparentemente sem surpresas não implica prejuízos para a observação crítica, questionamentos e denúncias presentes em cada frase. Mas o leitor será surpreendido pela mudança de registro, ou seja, pelo momento em que o que parecia ser a simples transcrição do dia a dia de um interno em um hospício cede passo à ficção. Essa mudança se dá “no exato momento em que o depoente entra a escavar o passado e aprofundar a sua ‘angústia de viver’”. (p. 26). À matéria-prima do diário acrescentaram-se os recursos da invenção romanesca, pois há nas páginas de O cemitério dos vivos personagens e fatos que não fazem parte da história pessoal do escritor, como esposa e filho. A inventiva ficcional de um casamento frustrado parece ser, de acordo com o crítico, uma necessidade de Lima Barreto “transpor para a esfera do imaginário […] o seu drama fundamental de saber-se capaz de uma alta produção literária ao mesmo tempo que era oprimido por um conjunto de condições sociais adversas” (p. 30). Bosi, leitor contumaz de Lima Barreto, lamenta: “A novela ficou inacabada. Foi pena, pois a substância autobiográfica (evidente nos episódios transpostos das páginas do diário) começava a resolver-se em prosa enxuta e pensada, só comparável às boas passagens dos romances do autor levados a termo” (p. 29)”.
De acordo com a crítica literária Yudith Rosenbaum, em resenha escrita ao jornal Folha de São Paulo, o efeito de continuidade, causado pela reunião do diário e do romance no mesmo volume, potencializa “a carga dramática dos textos. Encontram-se, na face da ficção, trechos inteiros destacados do relato documental, perdendo-se às vezes o limite claro entre o que é próprio do imaginário romanesco e o testemunho da experiência vivida. Mas, para quem buscava na literatura apagar tais fronteiras, idealizando a representação crua e direta da realidade, não há surpresa na mistura dos dois planos. O material, na força mesma de sua duplicidade e interpenetração, comove e instiga a uma reflexão sobre o território extremo da loucura, onde a razão se contorce e o sentido da vida se perde. A leitura do “Diário”, com sua “serena lucidez” e “ácida clareza”, nas palavras do prefaciador, revela o confronto duro e a indisfarçável revolta do escritor com um quadro social de mazelas, desigualdades e opressão, que o olhar sociológico do recém-internado no setor de indigentes do manicômio não tarda a identificar”.
Sobre o tratamento manicomial, Lima Barreto, no diário, diz: “Tirando dele a brutalidade do acorrentamento, das surras, a supertição das rezas, o nosso sistema de tratamento da loucura ainda é o da Idade Média: o sequestro”. No lúgubre pátio da Seção Pinel: “Só vemos uma grande abóbada de trevas, de negro absoluto. Não é mais o dia azul cobalto e o céu ofuscante, não é mais o negror da noite picado de estrelas palpitantes; é a treva absoluta, é toda ausência de luz, é o mistério impenetrável e um não poderás ir além que confessam a nossa própria inteligência e o próprio pensamento”. Como diz Yudith Rosenbaum, no artigo supracitado, “na descrição romanceada da cena patética em que Lima é levado ao hospício pelas mãos da polícia, a carriola que transporta o louco ‘arfa que nem uma nau antiga’, remetendo à nau dos loucos da Renascença, em que os insanos errantes na cidade eram embarcados para viajar sem destino ao longo dos canais flamengos e dos rios da Renânia. A impotência de quem “talvez fosse mais bem transportado num coche fúnebre de dentro de um caixão que naquela antipática almanjarra de ferro e grades” conhece, então, sua marca mais perene, que a memória precisaria exorcizar sob a forma de diário e de romance: ‘Imaginei-me amarrado para ser fuzilado, esforçando-me para não tremer nem chorar, imaginei-me assaltado por facínoras e ter coragem de enfrentá-los […], mas por aquele transe eu jamais pensei ter de passar’”.
Esta edição oferece um conjunto inédito de informações que entrelaça diferentes disciplinas: crítica literária, história e psiquiatria e faz com que o drama pessoal do escritor ressurja num quadro histórico mais amplo em torno do hospício e da capital da República, na virada do século XIX para o século XX. A edição ainda traz textos de autores como Machado de Assis, Raul Pompeia e Olavo Bilac sobre o hospício carioca.
Encontra-se infelizmente esgotado nas livrarias, disponível apenas em sebos, à espera de alguma nova edição.
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A MINHA BEBEDEIRA E A MINHA LOUCURA
Ao pegar agora no lápis para explicar bem estas notas que vou escrevendo no Hospício, cercado de delirantes cujos delírios mal compreendo, nessa incoerência verbal de manicômio, em que um diz isto, outro diz aquilo, e que, parecendo conversarem, as ideias e o sentido das frases de cada um dos interlocutores vão cada qual para o seu lado, eu me lembro muito bem que um amigo de minha família, médico ele mesmo de loucos, me deu, logo ao adoecer meu pai, o livro de Maudsley, O crime e a loucura. A obra me impressionou muito e de há muito premedito repetir-lhe a leitura. Saído dela, escrevi um decálogo para o governo da minha vida; entre os seus artigos havia o mandamento de não beber alcoólicos, coisa aconselhada por Maudsley, para evitar a loucura. Nunca o cumpri e fiz mal. Muitas causas influíram para que viesse a beber; mas, de todas elas, foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma catástrofe doméstica sempre presente. Adivinhava a morte de meu pai e eu sem dinheiro para enterrá-lo; previa moléstias com tratamento caro e eu sem recursos; amedrontava-me com uma demissão e eu sem fortes conhecimentos que me arranjassem colocação condigna com a minha instrução; e eu me aborrecia e procurava distrair-me, ficar na cidade, avançar pela noite adentro; e assim conheci o chopp, o whisky, as noitadas, amanhecendo na casa deste ou daquele.
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DIÁRIO DO HOSPÍCIO | O CEMITÉRIO DOS VIVOS
Autor: Lima Barreto
Editora: Cosac Naify
Preço mínimo: R$ 120,00 (352 págs.)
[disponível apenas em sebos]