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Doutor Jivago

19 janeiro, 2018 | Por Isabela Gaglianone

— Metafísica, meu caro, os médicos me proibiram. Meu estômago não digere.
— Deus o proteja. Deixemos isso pra lá. O senhor é um felizardo! Essa vista é admirável! Decerto vive aqui e nem a percebe.
Observar o rio fazia doer os olhos. As águas ondulavam e refletiam a luz do sol como folhas de metal. De repente, a superfície se enrugou. Uma balsa navegava para a outra margem levando cavalos, carroças, mujiques e mulheres.
— Olhe, ainda são cinco horas — disse Ivan Ivánovitch. — Aquele é o expresso de Sízran. Ele passa por aqui alguns minutos depois das cinco.
Ao longe na planície, da direita para a esquerda cruzava um trem amarelo e azul, parecendo menor pela distância. De repente, perceberam que ele parou. Debaixo da locomotiva, tufos de vapor branco se elevaram. Um pouco depois, ouviram-se apitos de alarme.
— Estranho — disse Voskobóinikov. — Há algo errado. Não há razão para ele parar ali no pântano. Alguma coisa está acontecendo. Bem, vamos tomar o nosso chá.

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O romance Doutor Jivago, do russo Boris Pasternak, acaba de ganhar uma cuidadosa edição brasileira pela Companhia das Letras, com tradução de Sônia Branco e Aurora Fornoni Bernardini.

Destacado por Eric Hobsbawn, em seu clássico A era dos extremos, como autor de relevância indiscutível, Boris Pasternak era poeta e, ao adentrar o terreno da prosa, produziu esta única e grandiosa obra. Seguindo a grande tradição do romance épico russo, herdeiro da prosa oitocentista, o romance traça um panorama completo da sociedade russa em um período historicamente crucial: a Revolução Russa, cujo drama e imensidão são retratados através da história do médico e poeta Iúri Andréievitch Jivago. Por seus olhos hesitantes, o leitor testemunha a eclosão e as consequências deste que foi um dos eventos mais decisivos do século. Em tempos sem esperança no que concerne à aspiração a uma vida normal, o amor de Jivago por Lara e sua crença no indivíduo ganham contornos de verdadeira resistência.

No entanto, as opiniões sobre a obra podem ser divergentes. Como aponta Maria José Oliveira, no artigo “A obra maldita de Boris Pasternak”, publicado para o caderno ípsilon, do jornal português Público, o livro “para uns é obra-prima e para outros é lixo melodramático”; controvérsia emblematizada por Nabokov e pelo crítico literário Edmund Wilson, amigos até a leitura do romance: “Existiram vários motivos para a quebra de amizade entre os dois (a gota-de-água terá sido outro autor russo, Pushkin, e a tradução de ‘Eugene Onegin’, feita por Nabokov e cirurgicamente criticada por Wilson). Um anterior ponto de discórdia foi o valor literário de ‘Doutor Jivago’. Nabokov até gostava da poesia de Pasternak, mas não lhe perdoou a incursão no romance. Enquanto Wilson colocava a obra nos anais da História literária mundial – escreveu na ‘New Yorker’ (15 de Novembro de 1958) que acreditava que ‘Doutor Jivago’ iria ser ‘um dos grandes acontecimentos na história literária e moral da Humanidade’, definindo o livro como ‘um acto de fé na arte e no espírito humano’ – Nabokov caracterizava- a como ‘pirosa, melodramática, falsa e inepta’. Dono de uma caderneta de ódios de estimação literários (Faulkner, Bellow, Hemingway, Mann, entre outros), Nabokov definiu a sua sentença sobre o livro numa conversa com jornalistas: ‘‘Doutor Jivago’ é uma coisa lamentável, desastrada, vulgar e melodramática, com lugares-comuns, advogados voluptuosos, raparigas inverosímeis, bandidos românticos e coincidências banais’”. A crítica ressalta, porém, que Nabokov encontrava-se completamente isolado em sua leitura.

O romance foi originalmente censurado pelo Partido Comunista e apenas publicado fora da União Soviética, em 1957, na Itália. Rapidamente, foi traduzido para o francês e para o inglês. Maria José Oliveira pontua que “o excelente acolhimento da obra incomodou sobremaneira o regime soviético (e já agora, Nabokov). Em ‘Personal Impressions’, o filósofo Isaiah Berlin, um dos primeiros amigos de Pasternak a ler o manuscrito, considerou ‘Doutor Jivago’ a obra de ‘um génio’. ‘Parece-me transmitir toda a dimensão da experiência humana, e criar um mundo, mesmo que esse mundo só contenha um único habitante genuíno, numa linguagem de inigualável força imaginativa’. E Italo Calvino, num texto datado de 1958 e compilado em ‘Por que ler os clássicos?’, escreveu: ‘A veia do filosofar apaixonado continua a brotar por todo o livro, mas a vastidão do mundo que aí se move é tal que pode aguentar com tudo isto e mais ainda’”.

Para aumentar o incômodo dos que não conferiam o devido crédito literário a Pasternak, justamente em 1958 ele foi o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, “pelo seu importante feito tanto na lírica poética contemporânea como na área da grande tradição épica russa”. Ainda é Maria José Oliveira quem conta que “um dia depois de ter recebido o telegrama da Suécia, começou a aperceber- se dos efeitos do Nobel com a visita de um membro do departamento cultural do Comité Central do Partido Comunista, que lhe ordenou a recusa imediata do prémio, sob a ameaça de uma perseguição sem precedentes nos media. Nesta primeira abordagem, o escritor recusou cumprir a ordem, explicando que já tinha respondido ao Comité do Nobel e que a rejeição poderia ser interpretada como falta de educação. Argumentos que, como seria de esperar, não tinham qualquer significado para o partido liderado por Nikita Khrushchev. Conta o filho que, nesses dias, o pai tentou cumprir a sua rotina diária – traduzia, então, ‘Mary Stuart’, obra dramática de Schiller -, embora evitasse olhar para os jornais. Estava empenhado em não se deixar quebrar. E foi isso que quis provar à União de Escritores Soviéticos, enviando uma carta aos seus pares que foi lida durante uma reunião destinada a discutir o assunto Nobel – encontro que, note-se, quase ditou a sentença de morte de Pasternak (‘uma bala na cabeça desse traidor!’, terá gritado uma ‘famosa escritora’ durante a acalorada discussão)”. Ainda que Doutor Jivago não seja considerado um romance político e que Pasternak tivesse sido contemplado pelo conjunto de sua obra, pressionado, o autor declinou do Prêmio. O romance, que é ainda o mais notório romance da Rússia pós-revolucionária, só seria lido por seus conterrâneos em 1987, mais de duas décadas após a morte de Pasternak.

Flávio Ricardo Vassoler, doutor em Letras, em bela resenha, publicada no jornal O Estado de São Paulo, dá voz ao autor e comenta: “Ourives da palavra e escultor de imagens poéticas em meio à prosa, o escritor russo Boris Pasternak (1890-1960) ressoa em sua obra-prima Doutor Jivago a máxima dostoievskiana segundo a qual ‘a beleza salvará o mundo’. Munido de um profundo panteísmo, Pasternak celebra o encantamento diante da natureza como a crisálida das metáforas. Assim, o narrador/eu-lírico de Doutor Jivago recita que ‘observar o rio fazia doer os olhos. As águas ondulavam e refletiam a luz do sol como folhas de metal’. O lago, por sua vez, ‘estava repleto de nenúfares. O barco cortou essa massa vegetal com um barulho seco. A água surgia no meio da folhagem aquática como o suco no triângulo talhado da melancia’. E que dizer da precocidade poética do menino Iúri Jivago, quando ele sente que ‘o odor do carvão usado para ferver o samovar’ abafa ‘o cheiro de tabaco e o perfume dos girassóis’ enquanto o chá é servido? Estamos diante do mesmo ímpeto sinestésico que descobre ‘um odor adstringente de nozes frescas em cascas verdes ainda macias, que escurecem ao menor toque’, sinestesia que entrevê a paralisia dos flocos de neve no ar, flocos que descem tão lentamente ‘como o miolo do pão atirado na água para alimentar os peixes’. Se a ourivesaria poética de Doutor Jivago exalta, em cada uma de suas linhas/versos, a beleza que salvará o mundo, precisamos descobrir se o mundo – isto é, a história com a qual o romance se funde e se confunde – conseguirá salvar a beleza”.

 

A Companhia das Letras disponibiliza um trecho para visualização.

 

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.Trecho.

 

1

 

Caminhavam e entoavam “Memória eterna”; e quando concluíam, parecia-lhes que o canto prosseguia, ecoando na marcha dos seus pés, no passo dos cavalos, no sopro do vento. Os transeuntes recuavam para dar passagem ao cortejo, contavam as coroas de flores e se benziam. Os curiosos entravam na procissão e perguntavam: “Quem morreu?”. Respondiam: “Jivago”. “Ah, então é isso. Agora dá pra entender.” “Não, não é ele, é ela.” “Dá no mesmo. Deus a tenha. Enterro de rico.”

Os momentos seguintes passaram rápido, minutos contados, sem volta. “Do senhor é a terra e tudo o que ela contém, o universo e tudo o que nele vive.” O padre fez o sinal da cruz e jogou um punhado de terra sobre Maria Nikoláievna. Entoaram “Com o espírito dos justos”. Seguiu-se uma verdadeira azáfama. Fecharam o caixão, pregaram-no e o baixaram. Uma chuva de terra, atirada às pressas por quatro pás, tamborilou sobre a cova. Formou-se ali um montículo. E nele subiu um menino de dez anos.

Somente o embotamento e a insensibilidade que geralmente invadem as pessoas ao fim de um grande enterro poderiam justificar a impressão de que o menino pretendesse dizer algumas palavras sobre o túmulo da mãe.

Ele levantou a cabeça e lançou do alto um olhar ausente para as vastidões desertas outonais e para as cúpulas do monastério. O rosto de nariz arrebitado se desfigurou. O pescoço se espichou. Se um lobinho fizesse esse mesmo movimento com a cabeça, estaria claro que ele começaria a uivar. O menino cobriu o rosto com as mãos e caiu em prantos. O vento que vinha em sua direção açoitava-lhe as mãos e o rosto com uma fria chuva torrencial. Um homem de preto com mangas pregueadas e justas avançou até o túmulo. Era o irmão da falecida e tio do menino que chorava, o ex-padre Nikolai Nikoláievitch Vedeniápin, que largou a batina por vontade própria. Aproximou-se do menino e o levou embora do cemitério

[…]

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DOUTOR JIVAGO

Autor: Boris Pasternak
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 63,92 (616 págs.)

 

 

 

 

 

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