“O momento supremo da crise se consumava numa flutuação agradável e dolorosa, que não era deste mundo. Ao menor ruído de passos, o quarto rapidamente voltava ao seu aspecto inicial. Ocorria então entre as suas paredes uma redução instantânea, uma diminuição extremamente pequena de sua exaltação, quase imperceptível; isso me convencia de que uma finíssima crosta separava a certeza em que eu vivia do mundo das incertezas” – Max Blecher.
Acontecimentos na irrealidade imediata, do romeno Max Blecher, é uma ficção autobiográfica experimental. Narrado na primeira pessoa, o romance perpassa uma história de amadurecimento, do agravamento das “crises de irrealidade” juvenis, exacerbados pela subjetividade de um narrador hipersensível e que sofre de uma grave enfermidade. O protagonista é um alter ego de Blecher, que morreu em 1938, antes de completar 29 anos, após ter passado dez anos internado, em sanatórios e em sua casa, para o tratamento do mal de Plott, uma doença degenerativa, espécie de tuberculose que afeta a coluna vertebral.
O livro é profundo, denso, inquieto, agudo, assombroso.
O crítico Alfredo Monte, em resenha originalmente publicada no jornal A Tribuna, de Santos, aponta que o narrador protagonista, “desde criança, através de transes e delíquios súbitos, […] tinha a percepção crua da estranheza do mundo (e da sua falta de transcendência; de fato, poucos textos fizeram uso tão cabal de uma meditação fenomenológica, mostrando que a existência é estar-aí, irremediavelmente contingente), uma “irrealidade imediata” onde as coisas, mais do que os seres, avultam”. Monte comenta: “Depois de, numa cena dolorosa e patética, tentar se fundir ao “barro de que são feitas todas as coisas” (e se suicidar, ingerindo um vidro de comprimidos, por não conseguir se manter em tal estado adâmico), numa visita à Edda, mulher por quem sente um ininterrupto fascínio, ele julga ver um buquê de dálias num vaso, mas que na verdade é uma echarpe. Da insólita confusão perceptiva chega à seguinte conclusão: “o mundo tinha um aspecto comum próprio, no meio do qual eu despencara por equívoco; jamais poderei me transformar em árvore, jamais poderei matar alguém, jamais o sangue jorrará em ondas. Todas as coisas, todas as pessoas encontravam-se presas em sua triste e pequena obrigação de ser exatas e nada mais que exatas. Era inútil acreditar que havia dálias dentro de um vaso quando o que havia ali era uma echarpe. O mundo não tinha força de mudar o mínimo que fosse, encontrava-se tão mesquinhamente preso a sua exatidão que era incapaz de permitir que se tomasse uma echarpe por flores…”. Não há escapatória do mundo tal qual, e nesse ponto, Blecher é um praticante circunspecto e desencantado da escrita surrealista, com a qual apresenta certas afinidades”.
Para a poeta Paula Cajaty, em resenha escrita para o Jornal Rascunho, “os Acontecimentos na irrealidade imediata de Max Blecher são exatamente os suspiros de uma arte que espelha sua alma, sem subterfúgios, sem truques de magia. Sua formação essencialmente poética, sua constituição física frágil e sua personalidade sensível se revelam neste livro autobiográfico intenso na inquietude e estranheza de seu cotidiano, na atmosfera ao mesmo tempo vazia de sentidos e repleta de significados”. Segundo a análise da poeta, o protagonista do livro “observa tudo com riqueza de detalhes, atravessa os anos de modo melancólico e amargo, como se sua própria vida não fosse sua. Uma espécie de onipresença assombrosa, assustadora e terrivelmente bela. Talvez a precisão de detalhes e o sentimento de não-pertencimento ao mundo, bem como sua dissociação com a realidade, fossem alguns dos efeitos próprios da doença, cujos períodos de febre eram capazes de gerar sentimentos conflitantes e revoltosos, assim como um tipo de realidade aumentada, uma claridade incomum sobre o mundo material que o cercava. Talvez a irreversibilidade da doença e a descrença em um mundo inocente, puro e bom estivessem na raiz das tendências de autoflagelo e de natureza suicida que rondavam sua obra”.
Max Blecher, durante os períodos de internação, trocou cartas com importantes escritores e filósofos da época, como André Breton, André Gide e Martin Heiddeger. Em 1931, publicou seu poema de adesão ao surrealismo, “L’inextricable position”, na revista de André Breton, Le surréalisme au service de la révolution.
Sob excelente tradução de Fernando Klabin, o livro foi publicado no Brasil pela Cosac Naify em 2013 e é o único de seus textos disponível em português.
Em entrevista, o tradutor aponta: “O romance de Blecher foi publicado numa época em que o modernismo efervescia na Romênia. Depois do surgimento dos romances histórico-mitológico e realista-camponês nas primeiras duas décadas do século XX, depois do êxito do psicologismo citadino e analítico dos anos 1920, num contexto em que a literatura romena descobria seus mitos modernos e recodificava suas obsessões cultural-identitárias, a obra de Blecher traz uma novidade de certa forma polêmica. Não propõe problematizar a consciência nem apresentar um dilema ideológico, mas uma crise do conhecimento e uma aventura metafísica (a leitura dos surrealistas se fazia presente!), realizando a passagem do psicologismo da geração anterior para um sujeito “vazio”, incapaz de unificar o mundo por meio da representação”. Segundo Klabin: “De fato, a vida de Blecher foi curta e marcada por uma doença absurda e revoltante, que o prendeu à cama durante toda a sua vida adulta e criativa. Justamente por isso, sua literatura chega a ilustrar uma aposta: a de identificar um sentido “tão claro quanto um nome” desta vida e, implicitamente, o sentido da vida em geral. Nessa tentativa, o seu texto oscila entre a confissão direta, de diário, compreendida porém mais como uma sinceridade dos sonhos do que a dos acontecimentos (em A toca iluminada), e o romance de aventuras paradoxais, que denuncia com veemência a memória diurna (em Acontecimentos…)”.
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Tento definir com exatidão as minhas crises, mas só encontro imagens. A palavra mágica que vier a exprimi-las deverá tomar algo emprestado das essências de outras sensibilidades da vida, destilando-se delas como uma nova fragrância criada a partir de uma sábia composição de perfumes.
Para existir, ela deverá incluir algo da estupefação que me toma quando observo uma pessoa na realidade e depois acompanho com atenção seus gestos no espelho; algo do desequilíbrio das quedas num sonho, com seu sibilo de pavor que percorre a espinha dorsal num momento inesquecível; ou algo da névoa e da transparência habitadas por bizarros elementos decorativos em bolas de cristal.
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ACONTECIMENTOS NA IRREALIDADE IMEDIATA
Autor: Max Blecher
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 25,20 (192 págs.)