Literatura

Entre nuances, a verdade

26 maio, 2015 | Por Isabela Gaglianone
László Moholy-Nagy

László Moholy-Nagy

De verdade é considerado por muitos críticos como a obra máxima do húngaro Sándor Márai. Escrito ao longo de mais de quarenta anos, este denso romance divide-se entre a voz de quatro narradores. Cada um deles descreve suas vidas e seus entrelaçamentos, portanto, ocorrem nas confluências de olhares de cada um sobre as situações, sobre si e sobre os outros. Diferentes organizações de discurso em relação a fatos ocorridos com mais de um dos narradores torna-se de maneira engenhosa um comentário às dificuldades de convivência decorrentes da diversidade de percepções.

Sándor Márai perpassa os conflitos do amor e do casamento, ao passo que também desmascara os meandros da burguesia decadente da Europa Central entre as duas grandes guerras. 

Mostrando de maneira aguda a fronteira intransponível entre classes sociais, o romance estabelece-se em uma capital agonizante, sitiada pelas tropas comunistas. Numa confeitaria de Budapeste, uma das personagens conta a uma amiga a história do término de seu casamento. Pouco depois, a narrativa concentra-se na atmosfera carregada de um café, em que Péter, o ex-marido de que se falava, narra a um amigo a sua versão sobre a separação. Trinta anos mais tarde, na cama de um quarto de hotel em Roma, a primeira personagem fala ao novo namorado, músico, sobre o casamento fracassado com Péter. Em Nova York, o músico, baterista de cabaré, faz uma crítica áspera da ditadura da sociedade de consumo.

O critico Kelvin Falcão Klein, em artigo publicado no jornal Rascunho, analisa a estrutura da obra como compostas por “quatro monólogos que giram em torno de um casamento e suas conseqüências”. Segundo a leitura do crítico, a chave da complexidade do livro “está no monólogo, que é um artifício fundamental na obra de Márai — e é também o monólogo que nos leva novamente ao século 19 e ao caráter profundamente “teatralizado” da prosa desse autor”. O romance, para Klein, tem a virtude de “multiplicar os pontos de vista, desenvolvendo, a partir disso e a partir da sobreposição dos monólogos, uma interessante reflexão sobre a confiabilidade da própria narração”. Assim, o “próprio título se justifica diante desse jogo de máscaras da verdade, que é sempre relativa e dissimulada. […] O romance de Márai, portanto, postula uma busca pelo inexistente, pelo vazio, por tudo aquilo que escapa — aquilo que está sempre além da linguagem, da memória ou da história”.

Traduzido diretamente do húngaro por Paulo Schiller, o livro foi publicado em 2008 pela Companhia das Letras.

A editora disponibiliza um trecho para leitura.

 

_____________

“Eu lia muito. Mas também com a leitura somos, você sabe… você só ganha dos livros alguma coisa se for capaz de dar alguma coisa às suas leituras. Quero dizer, se se empenhar a ponto de no duelo da leitura receber e infligir ferimentos, se se dispuser a discutir, convencer, e se convencer, e depois, enriquecido pelo que aprendeu no livro, na vida, ou no trabalho, você puder construir com base nisso alguma coisa… Um dia notei que não tinha mais uma relação verdadeira com as minhas leituras. Lia como lemos uma cidade desconhecida, para passar o tempo,  como vamos a um museu onde olhamos para os objetos expostos com uma indiferença educada. Lia como quem cumpria uma obrigação: saía um livro novo, falavam dele, eu tinha de lê-lo. Ou ainda não havia lido o livro antigo, famoso, minha cultura era imperfeita, toda manhã e toda noite eu lhe dedica uma hora e o lia. Eu lia assim… Houve um tempo em que a leitura era para mim uma aventura, eu pegava nas mãos com o coração batendo forte os livro novos dos escritores conhecidos, o livro novo era como o encontro com alguém, uma convivência perigosa de que adviria toda espécie de coisas felizes, boas, mas também consequências perturbadoras, angustiantes. Agora eu lia como ia à fábrica, como ia duas vezes por semana, ou mais, aos encontros sociais, como ia ao teatro e como vivia em casa com minha mulher, atencioso e educado, no coração com a questão opressiva, preocupante, a qual gritava rouca que havia um grande problema comigo, um grande perigo me ameaçava, talvez eu estivesse doente, talvez uma armadilha ou uma trama estivesse sendo armada contra mim e eu não tivesse certeza de nada, um dia acordaria ante a realidade de que tudo o que eu construíra, a obra-prima da ordem cuidadosa, do respeito e dos bons modos e da convivência educada ruiria…”

_____________

 

sandor marai

 

DE VERDADE

Autor: Sándor Márai
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 42,00 (448 págs.)

 

 

 

 

Send to Kindle

Comentários