Diferente do fantástico, o absurdo cala em si um lado de humor negro do existencialismo.
Daniil Kharms, um dos pioneiros do absurdismo, foi, enquanto poeta e dramaturgo, considerado um dos mais autênticos e talentosos escritores da vanguarda russa. Os sonhos teus vão acabar contigo é um título que parece pairar em prenúncio, pois seu autor foi um dos cruéis exemplos do destino dos artistas na ditadura stalinista, culpado por divergir, estética e filosoficamente, do chamado “realismo socialista”, morreu, abandonado numa prisão psiquiátrica a ponto de definhar de fome e ter o corpo devorado por ratos.
A mistura de gêneros desta coletânea de textos de prosa, poesia e teatro de Kharms – construída como uma “polifonia formal” – é, sob sua pena, peculiarizada por uma comicidade e um caráter absurdo, completamente originais: entre paródias, o grotesco serve-lhe como elemento simbólico sintetizador de uma poética absurdista da vida cotidiana banal.
Seus textos dialogam com a arte a que são contemporâneos, mas também com o que há de mais profundo no dramático da própria condição humana [Confira Matraca].
Witold Gombrowicz, em Ferdydurke, inicia pelo título sua articulação literária do absurdo.
“E já ninguém sabe discernir o que é real do que não existe, a verdade da ficção, o que se sente do que não se sente, o que é natural do que é pretensioso, e aquilo que d e v e r i a s e r se confunde com aquilo que é, desclassificando-se e anulando-se mutuamente, um ao outro desprovendo-se de sua razão de ser. Ah, a grande escola do irrealismo!”.
O que significam as associações, a princípio aleatórias e alucinantes, de Gombrowicz? Seu absurdismo é psicológico, paranoico, o retrato do caos das arbitrariedades ordenado de maneira doentia, ininterrupta e profunda. Um coringa no baralho, se qualquer ordenação é plausível. Uma demência camuflada? Não. A contemplação de si mesmo enviesada, em que se descobre contemplando as associações, alheias. Gombrowicz mostra a concomitância dos dois lados da mesma moeda, o alcance do dúbio, do ambíguo e do contraditório; ao mesmo tempo dá um sentido burlesco aos paradoxos.
O teatro do absurdo, conforme expressão cunhada pelo crítico húngaro Martin Esslin, define-se pela tentativa de expressão do sentido da falta de sentido da condição humana. Eugène Ionesco e Samuel Beckett são seus dois maiores expoentes. Através de algumas características comuns, como efeito tragicômico, fragmentação, repetições, ininteligibilidade, o teatro do absurdo retrata uma angústia metafísica, consequência da tomada de consciência da absurdidade humana em meio a um mundo de crenças destroçadas pelos horrores das grandes guerras, pelas atrocidades cometidas pelos governos totalitários.
Esperando Godot mostra o homem perdido em meio a um mundo esvaziado de sentido, retrato do desamparo da condição humana. A esperança é uma ilusão, a existência, nada tem a oferecer à risível e absolutamente inútil vida humana. A irresoluta dissolução do real traduz um niilismo metafísico.
Georges Bataille, em A experiência interior, tem uma experiência particular do absurdo, segundo Sartre, que diz: “[…] o pensamento moderno encontrou duas espécies de absurdo. Para alguns, a absurdidade fundamental é a ‘facticidade’, quer dizer, a contingência irredutível do nosso ‘ser-aí’, da nossa existência sem meta e sem razão. Para outros, discípulos infiéis de Hegel, ela reside no fato de que o homem é uma condição insolúvel. É essa absurdidade que Bataille sente mais fortemente. Ele considera, como Hegel, o qual ele leu, que a realidade é conflito. Mas para ele, assim como Kierkegaard, Nietzsche, Jaspers, há conflitos sem solução; da trindade hegeliana ele suprime o momento da síntese e substitui à visão dialética do mundo uma visão trágica ou – para falar na sua linguagem – dramática”. De acordo com a interpretação sartreana, para Bataille “o absurdo não é dado, ele se faz; o homem se cria a si mesmo como conflito”, é a unidade a que Kierkegaard chama “ambiguidade”: “nela as contradições coexistem sem se fundir, cada uma remetendo a outra indefinidamente. É essa unidade perpetuamente evanescente que constitui a experiência imediata que Bataille faz de si mesmo; é ela que lhe fornece a visão origina do absurdo e a imagem que ele usa constantemente para expressar essa visão: a de uma chaga que se aprofunda por si mesma e cujos lábios tumefactos se escancaram largamente em direção ao céu”.
A contradição insuperável faz do homem, absurdo – converte-o em um ser impossível. O absurdo é intrínseco à condição humana.
Camus, em O mito de Sísifo – Ensaio sobre o absurdo, inaugurou a reflexão sobre a absurdidade da condição humana: “Anteriormente tratava-se de saber se a vida devia ter um sentido para ser vivida. Agora parece, pelo contrário, que será tanto melhor vivida quanto menos sentido tiver”. A figura de Sísifo, para Camus, ilustra o herói do absurdo, tanto por suas paixões, como por seu tormento: “Ao final desse esforço imenso medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, o objetivo é atingido. Sísifo, então, vê a pedra desabar em alguns instantes para esse mundo inferior de onde será preciso reerguê-la até os cimos. E desce de novo para a planície”. É justamente no retorno, na pausa, que Sísifo mostra-se plenamente interessante à análise camusiana: “Um rosto que pena, assim tão perto das pedras, é já ele próprio pedra! Vejo esse homem redescer, com o passo pesado, mas igual, para o tormento cujo fim não conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que ressurge tão certamente quanto sua infelicidade, essa hora é aquela da consciência. A cada um desses momentos, em que ele deixa os cimos e se afunda pouco a pouco no covil dos deuses, ele é superior ao seu destino. É mais forte que seu rochedo”. Para Camus, o rochedo de Sísifo é sua questão, através dele, seu destino lhe pertence: “O homem absurdo não pode fazer outra coisa senão esgotar tudo e se esgotar”.
A experiência do absurdo ecoa a náusea sartreana, “lassidão mesclada de fastio”, frente à banalidade e maquinização repetitiva da existência. A irracionalidade no mundo é absurda quando confrontada com a racionalidade humana. Um humanismo, não niilismo, é o que desponta a interpretação do absurdo: segundo Camus, “o homem é seu próprio fim. E ele é seu único fim”.
O absurdismo é tido como decorrência interpretativa de aspectos da filosofia irônica do desespero de Søren Kierkegaard, para quem as decisões são tomadas em meio a incertezas que a racionalidade não elimina; ele escreve, em um de seus diários: “O que é o Absurdo? É, como pode ser facilmente visto, que eu, um ser racional, devo agir em um caso em que a minha razão e meus poderes de reflexão, digam-me: você pode muito bem fazer uma coisa como fazer a outra, isto é dizer que a minha razão e reflexão dizem: você não pode agir e, no entanto, aqui é que eu tenho que agir”.
Aqui levantamos apenas alguns dos autores do absurdo, cuja principal produção textual deu-se ao longo do século XX.