Algumas reflexões sobre o uso, ou o abuso estético no mundo, na vida, na arte. Trata-se de uma breve pontuação crítica ao juízo de gosto contemporâneo, que ainda encontra no belo seu fundamento. Discussões que se inserem na problemática da “estetização” da vida, do mundo – noção que vem sendo debatida sobretudo no cenário filosófico francês contemporâneo.
Cada dia mais, o estilo, o design e a beleza se impõem como imperativos estratégicos das marcas. O apelo ao imaginário e a habilidade em despertar a emoção dos consumidores impulsionam a criação massiva de mecanismos de sedução, no design, na moda, no cinema, nos produtos. Arte e mercado nunca antes se misturaram tanto, exagerando, na experiência contemporânea, o alcance do desdobramento das dimensões do valor estético. O filósofo Gilles Lipovetsky e o crítico de arte Jean Serroy, investigam estas relações, A estetização do mundo e o aparentemente paradoxal conceito do capitalismo artista.
Lipovetsky, em entrevista, pontuou de maneira sucinta o conceito de “capitalismo artista”: “Antes de mais nada, a estetização do mundo acompanha a própria história da humanidade. Desde a pré-história tínhamos formas de estetização, como as pinturas faciais, as bijuterias, os diferentes adereços. A novidade é que a estetização hoje é conduzida pelo capitalismo pós-fordista,que não se contenta em produzir produtos funcionais, mas investe em produtos de moda para vender mais, qualquer que seja a área. No passado, um par de óculos era apenas uma órtese para enxergar melhor. Hoje é um acessório de moda”.
Desvendando a superficialidade de um mundo em “tudo segue a lógica da moda: é efêmero e sedutor”, os autores investigam as transformações do capitalismo e do consumo, bem como seus alcances na individualidade dos sujeitos. Sua análise mostra que a cultura e sua expressão artística se converteram em simples negócio de mercado. Assim, a arte hoje impregna o mundo comum.
“A estetização é o desvio da atenção estética”. Jean Galard, em Beleza Exorbitante, parte de um levantamento empírico – “Diante da realidade brutal” – e retoma exemplos da história e da teoria da arte para introduzir seu desenvolvimento sobre a questão propriamente estética, e primeira, sobre a própria representação. Ao pensar sobre a estetização da dor, Galard põe em questão o papel da arte e de sua relação com a sociedade e seus valores. A reflexão que seu texto tece extrapola a questão fotográfica e a utiliza como base para abordar de maneira crítica a relação estética entre realidade e representação, mas tomada enquanto princípio de uma dinâmica sociológica da arte. A apreensão “sensacionalista” de uma “estética da fome” caminha junto com a espetacularização da sociedade.
Diz ele: “Diante da realidade brutal, sangrenta, que testemunhamos todos os dias através da imprensa e da televisão, o olhar desatina. Como suportar a visão dessas aflições intoleráveis? Não querer olhar seria fugir deste mundo, refugiar-se num conforto egoisticamente cego. Olhar é colocar-se num aposição indigna: a do espectador que assiste passivamente à angústia do outro. Somos culpados – ou de voluntária ignorância, ou de voyeurismo. Pior ainda: algumas imagens que nos horrorizam, que nos aterrorizam, são muito bem realizadas. São admiráveis, perturbadoras, inesquecíveis. Belas? Esta é a questão”.
A estetização estabelece uma transformação de seres, relações, situações, tornando-os “um espetáculo de que se pode usufruir sem se sentir vitalmente implicado”: a estetização “destitui de realidade as pessoas e os acontecimentos”.
O filósofo francês Jean Baudrillard analisa, no contexto pós-moderno, a estetização da vida cotidiana e o triunfo do signo, ambos, enquanto retratos da subordinação da produção ao consumo, do sujeito ao produto. Na cultura pós-moderna, a arte e a realidade transitam entre si, criando uma “alucinação estética do real”, uma estetização que veicula a transformação da mercadoria em signo – “cujo significado é determinado arbitrariamente por sua posição num sistema auto-referenciado de significantes” – e que transforma a fruição da obra de arte. Trata-se, para Baudrillard, do que ele denominou como “prosopopéia estética”.
Simulacros e simulação é um tratado irônico sobre os símbolos que permeiam a compreensão contemporânea de realidade. As simulações e os simulacros não são apenas abstrações fictícias, mas representações do real, feitas a partir de alguns seus vestígios imaginários, que criam um hiper-real. O real, segundo Baudrillard, neste processo, desaparece, desintegrando todas as contradições à força de produção de signos equivalentes: vivemos na hiper-realidade, em que o real e o imaginário se confundem, e a fascinação estética encontra-se em toda parte, de modo que “paira sobre tudo uma espécie de paródia não-intencional, de simulação técnica, de fama indefinível à qual se fixa um prazer estético”.
A arte e a realidade trocaram de lugar numa “alucinação estética do real” e “até o mais marginal, o mais banal, o mais obscuro estetiza-se”.
Yves Michaud parte da constatação de que, no mundo estetizado, o objeto artístico deixa de ser essencial, torna-se elemento de um cenário, de um contexto, contribui para um amplo espetáculo no qual sobressai o caráter decorativo. A expressão que o filósofo emprega para definir este processo de estetização é “arte em estado gasoso” – desenvolvida no livro homônimo, L’Art à l’état gazeux. Essai sur le triomphe de l’esthétique. A metáfora, precisa, traduz a manifestação artística ampliada a “rituais efêmeros, ornamentos corporais, adornos, procedimentos pirotécnicos, performances teatrais ou religiosas”.
Segundo Michaud, os museus passaram a ser freqüentados por diferentes públicos que ali buscam simples lugares de distração; os museus foram, assim, entregues ao turismo intensivo e tornaram-se opções para um lazer de massa. Da mesma maneira como a atitude frente ao museu, toda a vida contemporânea é marcada por uma atitude indiferente, imersa em um uma atmosfera estética. Comentando a análise de Michaud, Jean Galard diz que a “busca displicente pelo belo é onipresente”, que a “arte vaporizou-se ao mesmo tempo em que a experiência estética se generalizava. ‘É o triunfo da estética’”.
Triunfo, na realidade, de uma certa estética: difusa, apaziguante, conciliadora. Redução da atenção estética a uma experiência agradável, a uma intenção flutuante. A beleza que está supostamente ‘em toda parte’, na publicidade divertida, no design atraente, na embalagem dos produtos de consumo, no meio ambiente preservado, no corpo mantido em forma; bem como a estandartização e a transformação da experiência estética em produto cultural como algo passível de ser consumido massivamente, são alguns dos fatores que geram a vaporização da arte.
O crítico de arte Harold Rosenberg, por outro lado, analisa um processo de “desestetização”. No ensaio intitulado justamente “Desestetização”, no Brasil publicado no volume A Nova Arte [Perspectiva, 1975] – organizado por Gregory Battcock –, que compreende a ampliação do campo da produção artística, anunciando a diluição de “todas as limitações na espécie de substâncias fora das quais a arte pode ser constituída. Qualquer coisa – o desjejum, um lago congelado, o comprimento de um filme – é arte, ou como está, ou adulterada, ou escolhida como um fetiche”.
Para Rosenberg, “a arte desestetizada segue de mãos dadas com os acontecimentos estetizados, com a crescente injeção em situações reais da ambiguidade, do ilusório e do distanciamento emocional da arte”. O crítico põe em questão a subversão da exposição de obras de arte em galerias, tomando, como paradigmática, o trabalho artístico chamado “earthwork”; para ele, a função da arte não é mais agradar aos sentidos, mas prover uma investigação fundamental, tanto da arte, como da realidade. Diz ele: “Cavar buracos ou abrir fossos no solo, abrir uma trilha em um milharal, estender uma chapa quadrada de chumbo na neve (a assim chamada arte earthwork), não difere em sua essência desestetizadora da exibição de uma pilha de sacos de correspondência, de uma fileira de jornais colados na parede, ou do obturador de uma máquina fotográfica mantido aberto com uma exposição ao acaso durante toda a noite (a assim chamada arte antiforma)”. O despojamento de conteúdo estético deu início ao processo de desestetização, pois não só rejeitou o belo, como relegou o sensível. A desestetização, assim como a estetização, embaralha a noção estrita de obra de arte, forçando os seus limites conceituais.
Como pontua o professor Ricardo Fabbrini, no artigo “Fim das vanguardas:estetização da vida e generalização do estético”, “a generalização do estético na contemporaneidade, tal como a entendemos aqui, é distinta da estetização da vida, visada pelo projeto moderno. Na generalização estética, a ‘forma artística’ renuncia à autonomia tornando-se, por isso, aderente à dita realidade existente. Se o projeto moderno cumprisse o seu intento de estetizar a vida, isso acarretaria, segundo o próprio ideário vanguardista, a morte da arte”.
Trata-se da banalização da experiência capitalista em que tudo é absorvido dentro de uma lógica paradigmática de consumo. Inclusive a arte.