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Guia de Leitura

Estetização

18 setembro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Algumas reflexões sobre o uso, ou o abuso estético no mundo, na vida, na arte. Trata-se de uma breve pontuação crítica ao juízo de gosto contemporâneo, que ainda encontra no belo seu fundamento. Discussões que se inserem na problemática da “estetização” da vida, do mundo – noção que vem sendo debatida sobretudo no cenário filosófico francês contemporâneo.

 

Gilles Lipovetsky, Jean Serroy, "A estetização do mundo - Viver na era do capitalismo artista"

Gilles Lipovetsky, Jean Serroy, “A estetização do mundo – Viver na era do capitalismo artista”

Cada dia mais, o estilo, o design e a beleza se impõem como imperativos estratégicos das marcas. O apelo ao imaginário e a habilidade em despertar a emoção dos consumidores impulsionam a criação massiva de mecanismos de sedução, no design, na moda, no cinema, nos produtos. Arte e mercado nunca antes se misturaram tanto, exagerando, na experiência contemporânea, o alcance do desdobramento das dimensões do valor estético. O filósofo Gilles Lipovetsky e o crítico de arte Jean Serroy, investigam estas relações, A estetização do mundo e o aparentemente paradoxal conceito do capitalismo artista.

Lipovetsky, em entrevista, pontuou de maneira sucinta o conceito de “capitalismo artista”: “Antes de mais nada, a estetização do mundo acompanha a própria história da humanidade. Desde a pré-história tínhamos formas de estetização, como as pinturas faciais, as bijuterias, os diferentes adereços. A novidade é que a estetização hoje é conduzida pelo capitalismo pós-fordista,que não se contenta em produzir produtos funcionais, mas investe em produtos de moda para vender mais, qualquer que seja a área. No passado, um par de óculos era apenas uma órtese para enxergar melhor. Hoje é um acessório de moda”.

Desvendando a superficialidade de um mundo em “tudo segue a lógica da moda: é efêmero e sedutor”, os autores investigam as transformações do capitalismo e do consumo, bem como seus alcances na individualidade dos sujeitos. Sua análise mostra que a cultura e sua expressão artística se converteram em simples negócio de mercado. Assim, a arte hoje impregna o mundo comum.  Continue lendo

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Resenhas

Reflexões sobre o abuso estético

1 agosto, 2015 | Por Isabela Gaglianone

Jean Galard, Beleza Exorbitante

[Editora Fap-Unifesp, 2012. Tradução de Iraci D. Poleti]

fotografia de Sebastião Salgado, de "Êxodos"

fotografia de Sebastião Salgado, de “Êxodos”

A partir da crítica que a exposição Êxodos, do renomado fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, suscitou na França, o filósofo Jean Galard perpassa a história da arte para encontrar o cerne estético dos desdobramentos morais da obra de arte em geral, do ensaio-documentário fotográfico, em particular.

Trata-se de uma breve pontuação crítica ao juízo de gosto contemporâneo, que ainda encontra no belo seu fundamento. Que se insere na problemática da “estetização” da vida, do mundo – noção discutida no cenário filosófico francês contemporâneo por autores como Gilles Lipovetsky, Jean Serroy[1], Yves Michaud, Baudrillard.

O texto parte de um levantamento empírico – “Diante da realidade brutal” – e então retoma exemplos da história e da teoria da arte para introduzir a questão propriamente estética, e primeira, sobre a própria representação. Ao pensar sobre a estetização da dor, Galard põe em questão o papel da arte e de sua relação com a sociedade e seus valores. A reflexão que seu texto tece extrapola a questão fotográfica e a utiliza como base para abordar de maneira crítica a relação estética entre realidade e representação, mas tomada enquanto princípio de uma dinâmica sociológica da arte. A apreensão “sensacionalista” de uma “estética da fome”[2] caminha junto com a espetacularização da sociedade.

A própria intencionalidade do olhar é analisada de maneira crítica. O estatuto da imagem no mundo contemporâneo, negativo de um questionamento sobre o belo, embate-se necessariamente com uma discussão moral e ética.  Continue lendo

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fotografia

Filósofos, historiadores da filosofia, comentadores filosóficos franceses do século XX que pensaram a fotografia conceitualmente

15 outubro, 2014 | Por Isabela Gaglianone

A fotografia tomada como objeto de reflexão ou como argumento desdobra-se: como índice, como símbolo, como dispositivo, como representação de valores, como formadora de padrões de gosto e de beleza.

Enquanto conceito, ideia, ou mesmo argumento, a fotografia é rica questão propulsora para problematizações de cunho não só estético, mas também moral, social, ético e político.

 

Jean-Marie Schaeffer, “A imagem precária” [livro raro, disponível apenas em sebo e em espanhol]

Jean-Marie Schaeffer, em A imagem precária: Sobre o dispositivo fotográfico, investiga as modificações, decorrentes do advento das imagens fotográficas, das relações epistemológicas do homem com o mundo e com a realidade. Segundo ele, o signo fotográfico é resultado de uma inversão conceitual: dividida entre sua vocação documental e sua expressão ficcional, a fotografia é um ícone, nunca destituída da subjetividade autoral. Ela não se resume, portanto, à captação do real, mas é atualização e transformação do real, concilia documentação e expressão. É, a um só tempo, artefato e objeto que desempenha uma função estética enquanto obra de arte, intencionalmente ou não.

Em seu conteúdo icônico, a fotografia representa o objeto intermediando sua própria objetividade entre as inclinações culturais do receptor e a intencionalidade do fotógrafo: “Se o conhecimento e o objetivo podem com efeito motivar a tomada da impressão, mesmo assim jamais são transferidos na imagem: esta não é sua “ilustração” nem sua “codificação comunicacional”. O interpretante, mesmo se quisesse, não conseguiria “reencontrar” o conhecimento lateral e a intencionalidade do fotógrafo, não importa quanto se esforçasse para perscrutar a imagem”. Schaeffer portanto retoma a velha noção da fotografia como imagem análoga ao mundo visível, semelhante ao ícone peirceano, para investigar a relação direta entre a imagem e seu referente real. Segundo ele, a imagem é ficcional, estabelece uma fantasia lúdica por meio da qual passa a funcionar. Sua ficcionalidade baseia-se em um tripé composto por similitude – expressão de uma relação de identidade com o que é representado –, imitação – sua relação parcial com o que representa – e fantasia – relação de modificação com o representado, através da criação de um universo imaginário.

 

Jean Baudrillard, “O paroxista indiferente”

Jean Baudrillard é conhecido sobretudo pela ironia de seus textos e pelo desenvolvimento da noção de hiper-realidade. Segundo ele, a compreensão contemporânea de realidade é permeada por símbolos e simulacros, que tornam a realidade uma simulação de si mesma, uma hiper-realidade. As simulações e os simulacros não são apenas abstrações fictícias, mas representações da realidade, feitas a partir de vestígios imaginários desta mesma realidade. Partindo de uma reflexão sobre os sentidos da imagem, da fotografia à publicidade, Baudrillard chega à crítica da sociedade de consumo, constatando a perda da relação do sujeito com o objeto. O real, segundo ele, desapareceu, desintegrando todas as contradições à força de produção de signos equivalentes, as imagens tornaram-se paulatinamente tão repletas de conteúdo, que passaram de símbolos a coisas reais. A fotografia, neste processo, ao lado da televisão, tem, como função primordial, a produção de imagens que invertem os valores de realidade, passando de representações à substiuição do próprio real. A fotografia, enquanto produtora de imagens, especulariza o real. Sua imagem, como simulacro de simulação, a imagem de alta definição absorve o real e o assume, fazendo coincidir em si a realidade e a sua representação.

Suas reflexões sobre fotografia enquanto imagem especular encontram-se em muitos de seus livros. Segundo sua indicação, em entrevista, parte fundamental delas está reunida em O paroxista indiferente, livro que é quase um enigma do real e do irreal; um de seus capítulos, intitula-se, ironicamente, “A fotografia é muito bela, mas não se deve dizer isso”.

 

Lyotard, “A condição pós-moderna”

Lyotard foi um dos primeiros intelectuais a desenvolver o conceito de pós-modernidade, que, para ele, caracteriza-se pelo fim de um discurso universal, substituído pela construção do saber a partir de vários discursos, ou relatos, em jogos de argumentos e contra-argumentos, “o saber pós-moderno não é somente o instrumento dos poderes. Ele aguça nossa sensibilidade para as diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o incomensurável”. É neste sentido que ele também compreende as técnicas mecânicas e industriais de comunicação, as artes e as novas tecnologias de imagens. No livro A condição pós-moderna, Lyotard analisa as relações da pintura com a fotografia e encontra, sob a problematização do realismo, a própria arte colocada em questão. A arte enquanto documentação não pode alcançar o realismo que consegue a fotografia. Para o filósofo, o advento da fotografia significou ao mesmo tempo a realização e a clausura em relação ao programa metapolítico de ordenação do visual e do social. Lyotard, partindo da ideia kantiana do juízo de gosto como um sentimento comum, juízo, este, livre e desinteressado. Porém, ele ressalta que a fotografia, bem como os objetos estéticos estabelecidos pela dinâmica de produção e consumo do mundo capitalista, opõem-se a essa liberdade. Os próprios processos de fabricação produzem imagens belas, sem, contudo, corresponderem ao critério de liberdade de juízo, sujeitos a uma programação, estabelecida por conceitos determinados. A fotografia, enquanto produtora de imagens belas – demasiadamente belas, segundo ele – está submetida a uma dialética negativa. Lyotard não desvincula a fotografia da pesquisa industrial que produz seus equipamentos e suas respectivas qualidades técnicas, resultado de uma massa de fatos.

 

Philippe Dubois, “O ato fotográfico”

O ato fotográfico, de Philippe Dubois, no Brasil é um dos mais citados livros entre os interessados em pensar a fotografia. Define a fotografia não apenas como uma imagem, mas como um ato indicial, utilizando o conceito de índice conforme formulado pela semiótica peirciana. Segundo ele, a fotografia é substancialmente uma imagem-ato, um ato irônico, que, através de um meio mecânico óptico-químico, implica ontologicamente os sujeitos produtores e receptores da imagem final.

Ao longo do livro, Dubois reconhece a fotografia como espelho transformador do real e, dele, interpretativo. A fotografia seria um fragmento espaço-temporal da realidade, “eminentemente codificada (sob todos os tipos de ponto de vista: técnico,cultural, sociológico, estético etc)”. Indicial, a fotografia resguarda em si traços da realidade, por sua condição de contigüidade, mesmo fisicamente, pois plasma em testemunho o instante ínfimo, no ato fotográfico, em que não mais o olho humano atua, sobreposto momentaneamente sobre efeito da luz que é refletida pelo objeto e toca a película sensível.

Trata-se da investigação sobre a nova relação entre representação e real, que foi inaugurada pela fotografia. Dubois analisa a lógica do índice enquanto expressão artística, sugerindo sua ambivalência, pois que tanto conseqüente como propulsora.

 

Jean Galard, “Beleza exorbitante”

Jean Galard diz que as reflexões desenvolvidas em Beleza exorbitante foram-lhe despertadas após ter visto a exposição de fotografias de Sebastião Salgado “Êxodos”. Galard pensa sobre a estética da arte, questionando a possibilidade de beleza no horror, na violência e na miséria e, também, as consequências de sua exibição, se combativas ou complacentes. Ele analisa, assim, os códigos da imagem no mundo contemporâneo, pontuando historicamente as sutilezas da relação entre beleza e horror. À época da exposição de “Êxodos” em Paris, em 2000, Salgado foi alvo de críticas pela “excessiva beleza” de suas fotos, que documentam pessoas fugindo da miséria, percurso em que arriscam suas vidas; entre povos fotografados há sudaneses, bósnios, afegãos, curdos do Iraque, ruandeses, entre outros. Segundo Galard, “a ampliação do campo da percepção estética normalmente suscita reprovação. Em alguns lugares, diante de certas cenas, a atenção estética, por parecer sem propósito, é tida como um abuso escandaloso”. Essa questão irradia outras; Galard tece uma reconstituição histórica da fotografia na arte e da definição e retratos, da qual exclui as fotografias em questão. Ele cita outro artista brasileiro, Glauber Rocha, e seu manifesto “Estética da fome”, em que o cineasta põe em questão a contextualização cultural da recepção da obra – o cinema novo, para um espectador europeu seria “um estranho surrealismo tropical”, ao passo que, para a maioria dos brasileiros, “miserabilismo e uma vergonha nacional”. A recepção crítica não é desvinculada do ponto de vista. Especialmente quando se trata de interpretar um suposto abuso estético, uma “espetacularização” da beleza nas catástrofes humanas.

Galard escreve desenvolve uma reflexão complexa de maneira extremamente clara, problematizando, no tênue limite entre beleza e desgraça, o sentido ético da representação. Seu livro não é sobre a fotografia, mas a utiliza como meio reflexivo irradiador estético e moral.

 

 

Em meio à semiótica e a relação entre símbolos, ícones e índices; à moral latente à estética; à produção cultural inserida em uma lógica mercantil-industrial como exemplar da dinâmica capitalista pós-moderna; à especulação e a espetacularização. A fotografia, como diria Bourdieu, no texto capital ao assunto – Un art moyen: essai sur les usages sociaux de la photographie [Ed. de Minuit, 1981], sem tradução para o português – cria as funções que cumpre enquanto agente social multiplamente simbólico, ainda que sejam ilusões, devaneios, ou meras ficções.

 

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