“O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias”.
A morte João Ubaldo Ribeiro é uma perda sensível à literatura brasileira. Sobretudo aos leitores que o acompanhavam semanalmente nos textos publicados nos jornais O Estado de São Paulo e O Globo.
Viva o povo brasileiro, um de seus mais célebres livros,completa, em dezembro deste ano, 30 anos desde seu lançamento. O livro havia sido publicado novamente pela editora Alfaguara em 2008 e, para comemorar o aniversário do primeiro lançamento, em novembro será lançada uma nova edição, com ensaios de Geraldo Carneiro e Rodrigo Lacerda. Segundo Lacerda, como divulgou o jornal O Estado de São Paulo, João Ubaldo fez, de Viva o povo brasileiro, “o grande entroncamento literário de sua carreira, onde todos os outros livros se encontram […] é o grande manancial, mas é simultaneamente o escoadouro de tudo”.
Viva o povo brasileiro versa sobre a história brasileira, ainda que o autor dissesse não tratar-se de um romance histórico. Ao longo das suas quase setecentas páginas, a narrativa percorre quatro séculos da história brasileira, da chegada dos holandeses, no século XVII, até a década de 70 do século XX, ficcionalmente representados, tematizando de maneira peculiar a construção da identidade nacional. Segundo Geraldo Carneiro, o livro “é uma celebração da língua e de seus inventores”. Segundo o professor João Luís Ceccantini, o livro “é uma espécie de ‘epopéia às avessas’, em que a história do Brasil ressurge não sob a perspectiva da ‘História oficial’, mas pela ótica de personagens anônimos do povo brasileiro. Na trama, o escritor segue as trilhas de um romance popular, sem cair no “popularesco” ou no “populismo”. E a saída que encontra para produzir um texto acessível mas ao mesmo tempo de alto nível literário é a da paródia e do humor”.
De acordo com Eneida Leal Cunha, no artigo “Viva o povo brasileiro: história e imaginário”: “Não parece ser do interesse do autor o confronto entre a vida vivida e a morte tornada símbolo, no sentido de uma averiguação da verdade daquela figura heróica, mas o seu oposto, fazer conviver, lado a lado, a significação histórica instituída (e representada no quadro) e a escolha aleatória do significante investido (José Francisco e a sua morte). Mesmo porque − e esta é uma das questões nucleares em Viva o povo brasileiro − não foi a ação em vida que elevou o Alferes ao panteão dos heróis da independência, não foi também a sua morte, e sim a eloquência das palavras que “teria pronunciado” ao morrer, palavras para as quais não houve testemunhas além das gaivotas. A impossibilidade de verificação do dito, a absoluta imaterialidade da fala final do Alferes, constitui o vazio providencial onde se instala o discurso patriótico e se expressa o imaginário brasileiro, no seu desejo de encarnar-se numa voz popular, como forma de legitimação”.
A narrativa é centrada na ilha de Itaparica, que, campo de batalhas indígenas, foi devastada pela chegada da infantaria holandesa. João Ubaldo parodia o processo histórico brasileiro com passagens heroicas e cômicas.
Em O albatroz azul, o último romance publicado por João Ubaldo Ribeiro, em 2009, ele novamente voltou à sua Itaparica natal, ao folclore da ilha de sua infância, com toda sua riqueza de mitos e lendas.
Em 2011, João Ubaldo participou do “Paiol Literário”, projeto promovido pelo Jornal Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep. No evento, ele disse, quando perguntado sobre a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas: “Esta pergunta poderia abranger a noite inteira de conversa, porque seria algo relacionado com a filosofia da arte. Para que serve a arte? A literatura, assim como a arte, é uma forma de conhecimento, de perceber o mundo e de expressar essa percepção. Nesse sentido, toda arte teria uma utilidade. Mas não acho que o critério da utilidade deva ser usado em relação à arte. A arte não deve ser vista de uma maneira tão pragmática, tão imediatista. Não se pode negar que a literatura contribui para a maturação e evolução da língua, para a expressividade dessa língua, para a utilização dessa língua, inclusive para a comunicação científica, porque as linguagens se entrelaçam. E como qualquer arte, a literatura é uma forma importante de conhecimento, de ver o mundo e de expressar o mundo através da linguagem. Acho que quem se expõe a um estímulo intelectual, emocional, artístico, está dando a si mesmo uma chance de expansão da sua sensibilidade, da sua humanidade. Se nós nos limitássemos a comer e procriar, tudo seria muito pobre”. Sobre sua visão do escritor, disse outra coisa interessante: “Eu queria ser um bom escritor. Tem uma frase interessante que o Vargas Llosa diz que quando o sujeito senta para escrever, ele resolve se quer ser um bom escritor ou não. É um pouco verdade. Eu resolvi que seria um bom escritor, que seria um escritor sério. Nunca tive nenhuma dúvida sobre isso. Sempre olhei a coisa como minha atividade principal, básica, desde o primeiro livro. Eu não planejo. Mas sou metódico na produção. Antigamente, no tempo da máquina de escrever, fazia uma cota diária de três laudas. Se passasse de três laudas, não poderia descontar no dia seguinte. Para não enganar a mim mesmo. Então, tinha que fazer o mínimo de três, podia fazer seis ou sete. Mas três já é duro. E todo dia, mesmo que no dia seguinte jogasse fora a produção porque estava ruim. Hoje, com o computador, uso como referência somente medidas baseadas no que escreviam certos escritores conhecidos como, por exemplo, Virginia Woolf, que escrevia mil, a mil e duzentas palavras por dia. É demais. Eu escrevo normalmente um Conrad, Joseph Conrad, que escrevia oitocentas palavras por dia. Escrevo de manhã, quando acordo. No dia seguinte, pego o fim do que estava escrevendo no dia anterior para embalar, copio e aí vou seguindo”.
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Trecho de Viva o povo brasileiro:
Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar. Vai morrer na flor da mocidade, sem mesmo ainda conhecer mulher e sem ter feito qualquer coisa de memorável.
É certamente com a imaginação vazia que aqui desfruta desta viração anterior à morte, pois não viveu o bastante para realmente imaginar, como até hoje fazem os muito idosos em sua terra, todos demasiado velhos só para querer experimentar o que lá seja, e então deliram de cócoras com seus cachimbos de três palmos, rodeados pelo fascínio dos mais novos e mentindo estupendamente.
E talvez falte apenas um minuto, talvez menos, para que os portugueses apareçam à frente deste sol forte de inverno na Baía de Todos os Santos e façam enxamear sobre ele aquelas esferazinhas de ferro e pedra que o matarão com grande dor, furando-lhe um olho, estilhaçando-lhe os ossos da cabeça e obrigando-o a curvar-se braçado a si mesmo, sem nem poder pensar em sua morte.
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Autor: João Ubaldo Ribeiro
Editora: Alfaguara
Preço: R$ 69,90 (640 págs.)