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Eu, estranho, alheio

27 abril, 2015 | Por Isabela Gaglianone

“Eu devia pouco a pouco mostrar-me o contrário daquilo que era ou supunha ser para esse ou aquele meu conhecido, depois de ter me esforçado para entender a realidade que me havia dado: necessariamente mesquinha, instável, volúvel e quase inconsistente”.

Giorgio De Chirico, "Gli sposi" (1926)

Giorgio De Chirico, “Gli sposi” (1926)

A Cosac Naify está repaginando parte de sua ótima coleção “Prosa do mundo”, sob o nome “Nova prosa do mundo”. Um dos livros reeditados é o primoroso Um, nenhum, cem mil, do italiano Luigi Pirandello (1867-1936), que esteve esgotado durante algum tempo após sua quarta reimpressão, feita em 2010.

O romance foi a última obra publicada por Pirandello, notabilizado como grande dramaturgo, romancista e contista. É considerado o romance mais complexo do autor, uma especulação metafísica, que une, à sua prosa, poesia e humor. Seu protagonista, Vitangelo Moscarda, questiona sua identidade por um comentário de sua mulher, sobre seu nariz pender um pouco para a direita, coisa da qual Moscarda nunca havia se dado conta e que o leva a refletir de maneira alucinada: 

“Vivendo, eu nunca havia pensado na forma do meu nariz… Mas agora pensava: E os outros? Para os outros que me veem de fora, as minhas ideias e os meus sentimentos têm um nariz. O meu nariz. Que relação há entre as minhas ideias e o meu nariz? Para mim, nenhuma. Eu não penso com o nariz – nem me importo com ele ao pensar. Mas… e os outros? Para os outros, as minhas ideias e o meu nariz têm tanta relação que, suponhamos, se elas fossem muito sérias e ele, por sua forma, muito cômico, todos começariam a rir”.

É o início de sua loucura: o protagonista descobre que não só não é quem pensava ser, como que que é um ser completamente diferente para cada um que o vê – absolutamente impotente frente à construção que, dele, os outros fazem. Percebe, assim, que ele mesmo não se conhece direito, pois aquele que imaginava ser, simplesmente não existe. Reflexão tragicômica, que leva-o à conclusão: como não existe, não é ninguém. O título do romance prepara o leitor para a questão profunda de então se delineia: Moscarda tampouco reconhece a si na imagem que as pessoas fazem dele: cem mil pessoas teriam dele cem mil imagens diferentes, porém, nenhuma corresponde de fato à realidade – ou ao que lhe parecia a realidade de sua identidade.

“A ideia de que os outros viam em mim alguém que não era eu tal como eu me conhecia, alguém que só eles podiam conhecer olhando-me de fora, com olhos que não eram os meus e que me davam um aspecto fadado a ser sempre estranho a mim, mesmo estando em mim, essa ideia não me deu mais descanso” – reflete o protagonista.

No artigo “Luigi Pirandello: o filho do Kaos”, publicado no jornal Rascunho, a escritora Maria Célia Martirani cita a seguinte declaração de Pirandello: “Minha arte é cheia de compaixão por todos aqueles que iludem a si próprios. Mas, é inevitável, que esta compaixão seja seguida pelo escárnio feroz a um destino que condena o homem à mentira”. Segundo Martirani, o autor italiano desenvolveu um conceito original de humor, inovando a representação do mal-estar do homem moderno, pelo “fato de que seus anti-heróis não vivem, mas veem-se vivendo. É por esse viés que ele atualiza o trágico na modernidade, na medida em que aponta à inconstância de seus personagens, sempre em crise, devido ao aprisionamento dilacerante do inevitável jogo de máscaras que se lhes impõe. Esses seres problemáticos, em essência, representam a angústia de quem tem que dar conta de uma máscara exterior e de outra interior, quase sempre discrepantes”. Martirani cita parte da análise que o crítico e tradutor Maurício Santana Dias faz em seu prefácio às 40 novelas de Luigi Pirandello [Companhia das Letras, 2008], escritas entre 1894 e 1934: “As figuras criadas por Pirandello são indivíduos partidos ao meio, como Mattia Pascal, ou pulverizados, como Vitangelo Moscarda. “Heróis da vida intersticial”, diz o crítico Giancarlo Mazzacurati, são todos eles “sobreviventes de uma catástrofe da ideologia oitocentista cujo estrondo só se ouvirá plenamente durante a Grande Guerra. Eles já pedem para viver não acima nem dentro, mas debaixo da história: e, enquanto os Andrea Sperelli ou os Giorgio Aurispa (personagens de Gabriele D’Annunzio) reclamavam uma identidade mais forte do que o tempo que estavam atravessando […], estes, ao contrário, buscarão uma ética mais fraca ou flexível, em matrizes intemporais ou nas dobras secretas de uma sociedade já massificada”; a seguir, Maria Célia Martirani examina: “A sustentar essa linha de raciocínio, o conceito pirandelliano de humorismo traduz o humor como uma qualidade da expressão em qualquer gênero literário e define-se, basicamente, pela busca da criação de um sentimento do contrário. Ora, poderíamos afirmar que qualquer efeito cômico precisa destacar o contrário, a composição de imagens em contraste, para atingir seu propósito. Mas o que Pirandello traz de novo a isso é que ele põe em cena os processos psíquicos de interiorização do cômico, a partir da reflexão, que, em nenhum momento se confundem com a ironia”. Segundo ela, assim, é apenas “quando se dá conta do que lhe está ocorrendo, por um doloroso processo de internalização dos fenômenos ao redor, ao sentir, na própria pele, o flagelo da descoberta de que tudo é ilusório é que o protótipo deste anti-herói transforma a percepção em sentimento. E o humorista será o artífice dessa farsa trágica da vida”.

 

Na reedição do livro, apenas o projeto gráfico foi modificado: mantém a tradução, de Maurício Santana Dias, a apresentação escrita por Alfredo Bosi e o apêndice, uma entrevista que Sergio Buarque de Holanda realizou com escritor em 1927.

 

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Como suportar em mim este estranho? Este estranho que eu mesmo era para mim? Como não o ver? Como não o conhecer? Como ficar para sempre condenado a levá-lo comigo, em mim, à vista dos outros e no entanto invisível para mim?

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um-nenhum-cem-mil

 

 

UM, NENHUM, CEM MIL

Autor: Luigi Pirandello
Editora: Cosac Naify
Preço: R$ 27,93 (224 págs.)

 

 

 

 

 

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