Literatura

A exposição das rosas

20 julho, 2016 | Por Isabela Gaglianone

“[…] eu não morrerei uma vez, mas duas. Que diabo você fica olhando? É uma coisa simples. Agora mesmo poderei interpretar para você uma agonia que deixaria até o Ularik satisfeito. Depois, se necessário, você poderá filmar a agonia verdadeira também. Você terá duas mortes e poderá aproveitar no documentário aquela que estiver melhor”.

Gravura do húngaro Gabor Peterdi [Jane Haslem Gallery]

A Editora 34 reeditou a obra inaugural de sua ótima coleção Leste, publicada originalmente no Brasil em 1993.

A exposição das rosas, do escritor húngaro István Örkény (1912-1979), reúne duas novelas que, exemplares da notória da sátira e humor negro do autor, abordam com ironia a história recente da Hungria – sobretudo satirizando o militarismo e os frágeis valores da classe média. Ambas foram traduzidas diretamente do húngaro por Aleksandar Jovanovic. O volume conta também com prefácio de Nelson Ascher.

A novela que dá título ao volume, escrita em 1977, é a última e mais conhecida do autor. Nela, Örkény dá mostras de sua contundente capacidade visionária, ao narrar, como numa fábula pós-moderna, a história de um documentário em que doentes terminais têm sua morte gravada para exibição na televisão estatal húngara.

Na outra novela que compõe o livro, “A família Tóth” – redigida em 1967 e logo adaptada para o teatro e para o cinema com grande sucesso –, um major com trauma de guerra tira alguns dias de licença em uma bucólica vila perto das montanhas e, com seus medos e manias, passa a enlouquecer todos os membros da pacata família que o hospeda. O resultado é uma impagável sátira ao militarismo e à tirania, com um humor que lembra a irreverência surreal dos Irmãos Marx.

Ambas histórias combinam ironia, nonsense e um gosto singular pelo grotesco e o tragicômico. Revelam, segundo o escritor brasileiro Moacyr Scliar, “a própria condição humana, em sua imensa fragilidade”.

Conforme analisa Leonardo Francisco Soares, no artigo “Morte e ironia em ‘A exposição das rosas’, de István Örkény”, “nascido em 1912 e falecido em 1979, Örkény testemunhou de forma intensa e intrínseca as grandes convulsões que abalaram a Europa no século 20. Longe do panfleto, sua literatura tem como traço marcante a ironia”. Na primeira novela, que dá título ao volume, sintetiza Soares, “Iron Korom, um jovem e inexperiente diretor, tenta realizar um documentário sobre as horas finais de três pacientes desenganados, com o intuito de, nas suas palavras, ajudar os seus contemporâneos a compreenderem a experiência da morte. A partir do projeto de Korom, o texto de Örkény coloca-­nos diante de um confim: o limite da representação”. Ao longo da obra de Örkény, de acordo com o crítico, uma “situação ambígua é colocada por suas narrativas: a angústia de uma tarefa que carrega com igual intensidade tanto a impossibilidade de trasladar a vivência em linguagem como a necessidade irredutível de fazê-lo. A saída se encontra não na simples comunicação, informação da lembrança, mas na reinscrição e na reinvenção sensível da memória através da difusão de modos de significação que escapem à indolência da comunicação ordinária, recuperando a capacidade de se manifestar o ‘valor’ da experiência e não apenas a sua pobreza, para retomar as noções de Walter Benjamin. Em sua busca de construir técnicas de reinvenção da memória através da insurreição de outras linguagens e sintaxes, Örkény, durante o seu período de ‘descanso forçado’, após a tentativa de revolução em 1956, compõe um gênero literário específico pelo qual se tornaria conhecido dentro e fora da Hungria: um tipo de narrativa curta que ele chamou de Egyperces novellák (Contos de um minuto ou Histórias de um minuto)”. O texto de A exposição das rosas, segundo Soares, “é perpassado o tempo todo por um tom melancólico. Uma relação peculiar se estabelece entre melancolia e humor. Assim, diria Ítalo Calvino, ‘a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor é o cômico que perdeu peso corpóreo (…) e põe em dúvida o eu e o mundo, como toda a rede de relações que os constituem’. Na verdade, mais do que o encontro entre humor e melancolia, o que se percebe na leitura dos textos de Örkény é a afirmação da alegria e da melancolia como duas forças, dois sentidos que se afirmam na feitura e na textura da narrativa; o que nos leva a retomar a noção de ‘alegria melancólica’, desenvolvida por Idelber Avelar: ‘Pois é a alegria na melancolia – a alegria que deriva de que ainda nos melancolizemos ante a barbárie política – que prova que ainda não fomos narcotizados pela pilha de catástrofes a ponto de tomá-las como naturais; pela mesma razão, é a melancolia na alegria, o reconhecimento de um limite, uma impotência fundamental da afirmação gaia o que evita que a alegria caia na felicidade complacente própria dos que são cegos à catástrofe'”.

A segunda novela acompanha a família Tóth ao hospedar um major, a pedido do filho, seu subalterno, que, então em combate na guerra, almejava receber algum favor em troca da gentileza. Segundo Ricardo de Mattos, em resenha publicada no site Digestivo Cultural, ela “narra bem ao estilo ‘pastelão’ o transtorno causado pela hospedagem concedida a um militar. Trata-se do major Varró, superior do soldado Gyula Tóth. Este quem, evidentemente almejando vantagem pessoal, pede à família que abrigue o superior. Nem a família, nem o soldado auferem benefícios desta estadia, pois Gyula morre em campo antes mesmo da chegada de Varró à aldeia. Sua morte é omitida pelo carteiro louco que, tentando poupar a família, joga o telegrama com a notícia dentro de um barril de água estagnada. Após todo um rosário de ridículos e constrangimentos, o major parte. Quando a família Tóth imagina restabelecida a paz doméstica, ele retorna alegrinho, contando não haver trem pelos próximos três dias e pedindo pouso durante mais este período. Acaba sendo esquartejado. Este final imprevisível, ao qual são dedicadas as últimas linhas do texto de forma a reforçar a surpresa, faz toda a estória repetir-se rapidamente em nossa memória e questionar a comicidade das cenas anteriores. Onde encerra-se o cómico e inicia-se o trágico? É o humor com o qual Örkény talvez queira superar as aflições sofridas n’um campo de concentração. Resta apontar nesta obra a representação de um servilismo radical, de pessoas despreocupadas com a preservação da própria dignidade, dês que garantida a recompensa”.

Saudado como “O Molière húngaro”, István Örkény é marcante pelo uso satírico do grotesco e pela mordacidade.

 

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Trecho

 

O carteiro de Mátraszentanna foi convocado pelo Exército assim que a guerra estourou. Em seu lugar, acabou trabalhando um sujeito corcunda, meio apalermado e meio gago. Todos chamavam-no de tio Gyuri.

De fato, tio Gyuri tinha apenas um problema de senso de equilíbrio, que, no entanto, não chegava a ser grave. todas as manhãs, quando terminava de entregar a correspondência, caminhava exatamente sobre a linha divisória imaginária da estrada, e detestava que algo viesse a perturbar essa simetria. Chutava em direção da valeta os objetos que encontrava sobre a linha imaginária. Mas, se alguém, durante a espera impaciente pela correspondência, ousasse pôr os pés sobre a estrada, veria suas cartas apenas no dia seguinte, como forma de castigo.

Quando ele chegava ao poço artesiano, curvava-se sobre a água e ajeitava-se de tal modo que a sua própria imagem pudesse contemplá-lo do centro geométrico do poço. Muitas vezes xingavam-no ou o escorraçavam, acreditando que ele cuspia dentro do poço. Isso não era verdade, no entanto. Tio Gyuri apenas deixava escapar da boca um fio de saliva fino como um fio de seda e, assim que conseguia balançar o fio sobre o eixo imaginário do poço, sorvia-o entre os lábios. De certo modo, assim se refrescava.

O senso de simetria de tio Gyuri desempenhava também papel importante na entrega das correspondências. Por exemplo: ele odiava o professor Cipriani, o especialista em doenças nervosas, de renome europeu, cujo veículo, frequentemente, estava estacionado à frente de sua residência, à beira da estrada, numa posição claramente assimétrica. Em contrapartida, estimava muito a família Tóth e, em especial, o próprio Lajos. Na verdade, Gyuri alimentava verdadeira paixão por Lajos. É comum que os esfarrapados enxerguem seres sobre-humanos na figura dos que usam uniformes ou que os aleijados se vejam naqueles que têm corpos perfeitos. Mas isso não é tudo. Lajos Tóth sempre se preocupou com sua aparência: jamais alguém o viu com capacete torto ou um lenço aparecendo do interior do bolso. Para tio Gyuri, Lajos representava o superlativo da simetria humana, porque até o cabelo estava repartido ao meio de maneira exata, isto é, se alguém o cortasse em duas partes, com uma faca afiada, com certeza ele se dividiria, a partir do cabelo, em duas partes rigorosamente iguais, o que é difícil de fazer até com um ovo.

[…]

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A EXPOSIÇÃO DAS ROSAS

Autor: István Örkény
Editora: 34
Preço: R$ 34,30 (208 págs.)

 

 

 

 

 

 

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