A África fantasma, do antropólogo, poeta e escritor Michel Leiris (1901-1990), foi publicado originalmente em 1934. Trata-se de um extraordinário diário, no qual Leiris registrou o cotidiano da Missão Etnográfica e Linguística Dacar-Djibuti. A missão ocorreu entre 1931 e 1933 e atravessou a África, de sua costa atlântica até o Mar Vermelho; foi a primeira iniciativa francesa de investigação etnográfica no continente africano.
Pode-se dizer que o livro sintetiza a marcante pluralidade de interesses do autor. Sua leitura, pessoal, dos acontecimentos ao longo do trajeto e da pesquisa, interpenetra, ao estudo antropológico, a escrita autobiográfica – experiência levada ao limite, no final da década de 1930, com Espelho Da Tauromaquia [Cosacanaify, 2002, esgotado]. O texto, dessa maneira, não é um caderno de campo antropológico strito sensu, tampouco mero relato de viagem; reúne em si ambos gêneros, alinhando-os, ainda, a esboços de ficção, comentários políticos, registro de sonhos, obssessões confessionais. Leiris definiu-o como um “simples diário íntimo”. Seu texto, porém, denso, é inclassificável. Segundo o tradutor, André Pinto Pacheco, “a prosa de Leiris mistura o literário e o coloquial, o impessoal e o íntimo”.
A missão Dacar-Djibuti foi dirigida pelo etnólogo Marcel Griaule e reuniu dezenas de pessoas, a maioria, cientistas. O objetivo era realizar um programa de estudos etnográficos e lingüísticos. O livro de Leiris, contudo, revela que, também, a missão tencionava realizar uma vasta empresa de coleta de objetos, destinados a enriquecer as coleções do antigo Museu de etnografia do Trocadéro – que, fundado em 1878, foi transformado em Musée de L’Homme em 1937 e cujas coleções hoje localizam-se no novo Musée du quai Branly.
Segundo o antropólogo Jérôme Souty, em resenha sobre o livro: “A missão leva a antiga imagem positivista do erudito explorador, quando conhecer significava recensear, classificar, repatriar… Caixas e caixas de objetos foram pouco a pouco levadas para a França. Os membros da missão compravam todos os tipos de coisa (objetos artísticos e religiosos, elementos da cultura material, roupas, brinquedos de criança, etc.). Às vezes, eles requisitavam objetos fazendo uso de chantagem e outras formas de pressão, chegando até a roubar ou saquear: furto puro e simples de fetiches no Benim ou Mali, de estatuetas na região Dogon, de pinturas religiosas arrancadas nas igrejas de Gondar, na Etiópia… Leiris muitas vezes se envergonha deste comportamento: ‘Ainda não nos aconteceu de comprar de um homem ou uma mulher todas as suas roupas, deixando os nus pela estrada, mas isso certamente irá ocorrer’. Mas por um momento ele mesmo confessa sentir certo prazer neste tipo de sacrilégio: ‘o que me impele é a idéia de profanação…’”. Souty aponta o desconforto de Leiris em relação à colonização e à exploração dos colonizados. Diz ele: “A respeito dos funcionários na colônia ele percebe ‘a mesma existência mesquinha [que na metrópole], a mesma vulgaridade, a mesma monotonia e a mesma destruição sistemática da beleza’, notando que ‘Missionários e comerciantes se esforçam em corromper o país’. Sua lucidez crítica (e muitas vezes autocrítica) é devastadora: ‘Tenho horror a este mundo de estetas, moralistas e suboficiais. Nem a aventura colonial, nem o devotamento à ‘Ciência’ serão capazes de reconciliar-me com uma ou outra dessas categorias’. Mesmo desiludido com os objetivos e procedimentos da ‘ciência’, ele se mantém concentrado nas suas pesquisas e investigações: as práticas de circuncisão, as sociedades de crianças em Bamako, os segredos das máscaras e das ‘sociedades de homens’ no país Dogon (ver La Langue secrète des Dogons de Sanga -1937), o fenômeno do transe de possessão pelas diversas entidades, deuses ou gênios (dyidé, ollé horé, vodouns…), e em particular os zar, em Gondar (ver La possession et ses aspects théâtraux chez les Ethiopiens de Gondar -1958)”. De acordo com a resenha da Souty, a relevância, atualmente, da leitura do livro, é, por um lado, uma interessante análise da história da antropologia: “Trata-se da etnografia das sociedades africanas, mas também da etnografia do grupo de pesquisadores no contexto colonial”, diz. Por outro lado, o livro “prioriza a subjetividade na produção do conhecimento. Leiris defende a tese de que é pela subjetividade, levada ao seu paroxismo, que se alcança a objetividade”. Suas questões existenciais e introspecções, diz o crítico, “o seu egocentrismo, as suas obsessões eróticas e frustrações sexuais, podem parecer cansativas e até mesmo irritar o leitor. Mas o senso de humor do autor, que se manifesta tanto nas descrições exteriores como na sua auto-análise, imprime certa leveza irônica ao texto. Leiris narra muitas anedotas picantes e gostosas”.
Conforme diz, na apresentação do livro, a antropóloga Fernanda Arêas Peixoto, “os anos de 1929 e 1930 representam um ponto de inflexão na vida e obra de Michel Leiris. Uma série de eventos cruciais irão conduzir o então poeta surrealista rumo à antropologia e à autobiografia. A antropologia, cujo aprendizado deu-se durante a Missão Dacar-Djibuti, tornou-se, para o autor, até o fim de sua vida, uma profissão que, além de garantir-lhe o sustento, ocupava sua mente, distraindo-a da obsessão pela morte. A autobiografia será o gênero ao qual – após a publicação de A África fantasma, em 1934 –, dedicará seus esforços, recompensados pelo reconhecimento crítico da novidade de sua contribuição para a renovação da memorialística, a mais significativa depois de Proust”. Conta, a antropóloga, que, em 1929, “Leiris rompe com o surrealismo e se torna secretário de redação da revista Documents, órgão da dissidência surrealista, criado nesse mesmo ano e animado por Georges Bataille. Conhece o antropólogo Marcel Griaule, recém-retornado da Etiópia e colaborador da revista. Griaule, no ano seguinte, irá convidá-lo a participar da viagem pela África”. Peixoto conta ainda que entre 1929 e 1930 Leiris “decide estudar sociologia e antropologia, assistindo aos cursos de Marcel Mauss, fundador da antropologia francesa moderna, no Instituto de Etnologia. Leiris irá apropriar-se criativamente da noção de sacrifício elaborada por Mauss, aplicando-a à vida cotidiana e à sexualidade, reflexões desenvolvidas em seus textos autobiográficos”. A antropóloga pontua também que o autor, ao retornar à França, “concluiu ter ‘matado um mito: o mito da viagem como meio de fuga’, como confessará depois em A idade viril”. Segundo Peixoto, A África fantasma é “o diário que registra, de modo contundente e objetivo, a morte desse mito e o caráter inescapável da subjetividade. O título expressa esse descompasso entre a África imaginada e a vivida, ainda que refratada pela subjetividade do autor”.
O livro é dividido em duas partes. A primeira é marcada pelo registro do cotidiano da missão, os deslocamentos realizados pelo grupo, a verdadeira pilhagem de material para abastecer as coleções do museu, o relato do convívio com os colonos europeus, descrições críticas sobre a brutalidade colonizadora. A segunda parte do livro é um testemunho da viagem e das pesquisas realizadas na Etiópia, um dos poucos países que ficou alheio à colonização.
A edição brasileira foi publicada pela extinta Cosacnaify, em 2007, e conta com uma relação de nomes citados pelo autor e 36 imagens da missão, entre fotografias, desenhos e mapas.
Autor: Michel Leiris
Editora: Cosacnaify
Preço: R$ 49,20 (684 págs.)