Literatura

A estrada

3 março, 2016 | Por Isabela Gaglianone
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fotografia de vilarejo russo destruído.

Coletânea de prosa curta do grande escritor russo contemporâneo Vassili Grossman, A estrada traz textos de diversos gêneros, traduzidos diretamente do russo por Irineu Franco Perpétuo. O livro foi publicado no final do ano passado, pela Alfaguara, que também já havia publicado o notável Vida e destino.

Conhecido como o autor responsável por alguns dos mais impactantes relatos sobre a participação soviética na Segunda Guerra Mundial e sobre o Holocausto, Grossman, através desta reunião de reportagens intensas, contos esclarescedores e cartas comoventes, mostra mais um pouco do motivo pelo qual sua obra, reprimida na época stalinista, tem hoje tamanha ressonância internacional. Os textos aqui reunidos são devastadores, brutais e completamente atuais. Uma coletânea de escritos precedidos por introduções que, além de apresentar o contexto em que foram produzidos, trazem informações sobre a vida do autor e o recorrente eco da expressão “vida e destino” que, mais tarde, daria nome à sua obra-prima.

A estrada é composto por cinco seções textuais. Entre elas, “Na Cidade de Berdítchev”, conto publicado em 1934, versa sobre a revolução familiar que atingiu a vida dos soviéticos mais radicais e fervorosos e que foi uma das primeiras obras do autor a obter reconhecimento crítico. Outra parte dos textos reunidos no volume é composta por cartas de despedida que Grossman escreveu para a mãe, estando ela já morta há muitos anos, após fuzilada, junto com outros 12 mil judeus, pelos nazistas em 1941, exatamente na cidade na Berdítchev – cidade natal do autor.

Um campo de extermínio de judeus, na Polônia, é motivo de uma reportagem que acompanha o volume. Intitulada “O Inferno de Treblinka”, foi um dos primeiros retratos do horror dos campos nazistas. Um dos contos, “Mamãe”, foi baseado na história de uma menina, adotada pelo chefe da NKVD e, quando da queda política de seu pai, mandada para o orfanato. Outro conto narra a rendição de um médico e de sua mulher aos invasores alemães, na tentativa de resguardar suas posses; quando a Gestalpo  descobre, leva os doentes do sanatório para o extermínio e, frente a isso, o casal suicida-se.

Um dos grandes temas de Vida e destino, a identidade de objetivos entre nazismo e stalinismo, é sugerido em vários momentos de A estrada.

Segundo Helio Gurovitz, em artigo, a coletânea, entremeada de ensaios biográficos, ajuda “a compreender as escolhas de Grossman diante da pressão da máquina totalitária. Nascido numa família judia assimilada em Berdítchev, na atual Ucrânia, ele passou parte da infância com a mãe em Genebra, na Suíça, depois da separação dos pais. De volta a Berdítchev, os dois passaram a viver na casa dos tios. Grossman estudou engenharia química e começou a trabalhar numa fábrica. Ainda jovem, descoberto pelo dramaturgo Máxim Gorki, ligado aos comunistas, passou a publicar textos em jornais e revistas. Na Segunda Guerra Mundial, foi designado correspondente do jornal soviético Estrela Vermelha. Num curto período, testemunhou a batalha de Stalingrado e a libertação de campos de extermínio. Sua reportagem sobre Treblinka, o texto mais denso de A estrada, é considerada um dos primeiros testemunhos dos horrores nazistas. O relato ainda se ressente de concessões aos comunistas lá e cá, com que Grossman se debateria por toda a vida”

É notável, nos textos, a compaixão que permeia toda a prosa de Grossman, desde os poucos escritos do início da carreira até os mais maduros. O que faz a História, para ele, são as vidas humanas que nela caminham.

A Alfaguara disponibiliza um trecho para visualização.
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Trecho de “Na Cidade de Berdítchev”:

 

[…]

Em volta de Magazanik, seus filhos, sete anjinhos de cabelos cacheados e esfarrapados, fitavam Vavílova com olhos negros como a noite. Grande como a casa, ela tinha o dobro do tamanho do pai deles.

Magazanik foi finalmente posto de lado, e Vavílova entrou no quarto.

A partir do aparador, dos edredons achatados, das cadeiras esburacadas com assentos quebrados, aquela moradia lhe lançava um sopro tão espesso que ela tomou um grande fôlego, como se estivesse prestes a mergulhar na água.

À noite, não conseguiu dormir. Atrás da parede divisória, como se fosse uma orquestra com muitos instrumentos, dos zumbidos graves do contrabaixo aos agudos da flauta e do violino, a família Magazanik roncava. O bochorno da noite de verão, os cheiros densos, tudo isso parecia sufocá-la.

O quarto tinha cheiro de tudo!

Querosene, alho, suor, banha de ganso, roupa de cama não lavada. Ali moravam seres humanos.

Apalpava a barriga agitada e roliça; de vez em quando, o ser vivo que havia nela dava coices e se mexia.

Durante muitos meses, lutara contra ele de modo honrado e persistente: saltara pesadamente do cavalo; com fúria silenciosa, arrastara pesados cepos de pinheiros nos sábados comunistas; bebera ervas e infusões nas aldeias; consumira tanto iodo da farmácia do regimento que o enfermeiro esteve prestes a redigir uma queixa ao serviço de saúde da brigada; escaldara-se com água fervente no banho até ficar com bolhas.

Teimosamente, porém, ele crescera, dificultando seus movimentos e cavalgadas; ela enjoara, vomitara, sentira-se puxada para o chão.

A princípio, jogara a culpa de tudo naquele homem triste, sempre taciturno, que se revelara mais forte do que ela e chegara, atravessando o couro duro de sua japona e o feltro de sua camisa militar, até seu coração de mulher. Lembrara-se dele à frente de seus homens, conduzindo-os por uma pequena ponte de madeira de simplicidade aterradora, com as metralhadoras polacas matraqueando e, de repente, era como se ele não existisse mais: seu capote vazio erguera as mangas para o alto e, ao cair, ficara pendurado sobre o regato.

Vavílova passou por cima dele com seu garanhão embriagado, e o batalhão saiu em tropel atrás dela, como se a empurrasse.

Depois desse acontecimento, só restara aquilo. A culpa

era toda daquilo. Vavílova jazia derrotada, e aquilo vitoriosamente a escoiceava com seus pequenos cascos, vivo dentro dela.

De manhã, quando Magazanik se arrumava para trabalhar e a mulher lhe dava o café da manhã, afastando as moscas, os filhos e o gato, ele, fitando de soslaio a parede do quarto requisitado, falava baixo:

— Dê chá a ela, para que morra de cólera.

[…]

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A ESTRADA

Autor: Vassili Grossman
Editora: Alfaguara
Preço: R$ 38,43 (336 págs.)

 

 

 

 

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