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Filosofia do bom humor

30 janeiro, 2015 | Por Isabela Gaglianone

El Greco, “Alegoria com menino acendendo vela na companhia de um macaco e de um tolo”

David Hume fala da “agradável melancolia” necessária ao estudo filosófico. O tédio, a melancolia, o bom humor são algumas das questões que embasam a chamada “arte de viver”, e que permeiam noções estéticas, morais e políticas de todo o Iluminismo. É o que o professor Márcio Suzuki, em A forma e o sentimento do mundo, lançado pela editora 34 no final do ano passado, investiga, com sua peculiar prosa ensaística, erudita e original.

Em sua análise, aborda filósofos como David Hume, Adam Smith, Francis Hutcheson, Adam Ferguson, Immanuel Kant, bem com escritores como Laurence Sterne. Suzuki mostra como suas ideias filosóficas englobam usos práticos e morais de atividades como a conversação, o jogo, a caça, e todas as formas de “distração”, de preenchimento do tempo destinado ao ócio em geral. As formas de humor, de diversão, de devaneios e de atividades que estimulam o lúdico, ainda que não tenham utilidade prática imediata, são ricas aberturas à criatividade e vias de um filosofar estimulante.

Hutcheson, Hume e Adam Smith, por exemplo, ainda que considerados o fundadores da economia política e tendo sido os primeiros a estimarem um cálculo para o valor do trabalho, foram também os primeiros a pensarem sobre a produtividade latente ao tempo livre.

A própria conversação, ao longo do século XVIII, foi considerada uma arte da qual ramifica-se a forma ensaística. A conversa cria a possibilidade de discussão de ideias e, portanto, é filosófica por excelência, bem como, também por excelência, parte importante da chamada arte de viver, em sociedade.  No artigo “Quem ri por último, ri melhor”, análise sobre o ensaio Sensus Comunis, do filósofo inglês Shaftesbury, Suzuki aponta: “A mímica, o burlesco, a bufonaria são marcas da revolta contra o entusiasmo exagerado e a retórica empolada[1]. Resultados da falta de liberdade de espírito numa nação, eles se tornam voga justamente porque, sem que se perceba, são reação involuntária à coerção perpetrada pela autoridade. É a falta de liberdade de pensamento que explica o receio de ser ridicularizado e, conseqüentemente, “a falta de verdadeira polidez [true politeness] e a corrupção ou o mau uso da facécia [pleasantry] e do humor. […] Se o riso era uma reação até certo ponto justificável ao fanatismo e ao dogmatismo, trata-se agora de apontar a inadequação do riso, fazendo a crítica da sátira inadequada, do ridículo sem nenhum propósito ou interesse. E aqui chegamos ao ponto crucial, o da diferença entre sátira e crítica para Shaftesbury. A crítica é a única capaz de identificar onde há um erro, falta de gosto ou refinamento na sátira e no ridículo. Em geral, se ridiculariza a “falsa seriedade” (false earnest). Mas a “falsa troça” passa ilesa e se torna um “engodo errante [errant deceit] tanto quanto aquela”. Isso porque, voltando-se para o partido oposto, faz com que imperceptivelmente reforce a aparência de verdade do seu próprio partido.

“Porque, enquanto a dúvida é válida somente para um lado, a certeza cresce tanto mais fortemente no outro. Enquanto apenas uma face do desatino [folly] aparece ridícula, a outra se torna mais solene e enganadora”.

Em outro ensaio, “A aposta na filosofia”, Suzuki mostra que, para Hume, filosofar é uma atividade comum, semelhante a qualquer ocupação humana, não tanto fruto de argumentação teórica quanto de um cálculo prático, à maneira de um jogo ou da prática de caça. No jogo filosófico, perde aquele que jogar de maneira demasiado séria: a atividade filosófica deve passar pelo bom humor e pela diversão. Não só não há separação entre a filosofia e a vida comum, como a filosofia deve ser compreendida como uma disposição. Diz Suzuki: “Aplicação e bom humor. Essas duas palavras sintetizam bem a novidade da filosofia humiana em relação aos modelos antigos: diante da impossibilidade de atingir a tranquilidade do sábio, a mente deve ser entretida em aplicações moderadas; e, em vez de uma serenidade da alma inalcançável, o que se deve buscar é o bom humor. O ideal do sábio estoico é inatingível, já que não se pode pautar a conduta inteiramente pela razão, e o máximo de sabedoria consistirá em trocar paixões violentas por paixões amenas ou calmas – que, ainda assim, seguirão sendo paixões. […] A descoberta da verdade e o afastamento da obscuridade deleitam a mente, mas só são corretamente praticados se bem temperados por outros afazeres. É a boa distribuição das ocupações que caracteriza a condição ideal do temperamento e do humor para Hume, e isso está bem longe de um elogio da “quietude”. A centralidade do princípio de otimização para a ciência da natureza humana aparece numa passagem decisiva da Investigação sobre o Entendimento Humano, que fala do “modo de vida misto” que a natureza secretamente estipulou para os seres humanos. Fundamental para o entendimento da filosofia humiana, essa passagem merece ser citada mais uma vez na íntegra:

O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência seu adequado alimento e nutrição. Tão estreitos, porém, são os limites do entendimento humano que pouca satisfação pode ser esperada nesse particular, tanto no tocante à extensão quanto à confiabilidade de suas aquisições. Além de ser racional, o homem é também um ser sociável, mas tampouco pode desfrutar sempre de uma companhia agradável e divertida, ou continuar a sentir por ela a necessária atração. O homem também é um ser ativo, e é forçado, por essa inclinação e pelas variadas necessidades da vida humana, a dedicar-se aos negócios e ofícios; mas a mente exige algum descanso e não pode corresponder sempre à sua tendência ao trabalho e à diligência. Parece então que a natureza estipulou uma espécie mista de vida, como a mais adequada aos seres humanos, e secretamente os advertiu a não permitir que nenhuma dessas inclinações se imponha excessivamente, a ponto de incapacitá-los para outras ocupações e entretenimentos [Hume, Investigações sobre o entendimento humano, tradução de José Oscar Marques, pp. 25-26].

Márcio Suzuki é professor de estética no Departamento de Filosofia da USP. Atualmente, tem em vias de publicação uma coletânea das Contribuições a uma crítica da linguagem e do Dicionário de filosofia, de Fritz Mauthner.

 

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A FORMA E O SENTIMENTO DO MUNDO

Autor: Márcio Suzuki
Editora: 34
Preço: R$ 44,10 (560 págs.)

 

 

 

[1] A liberdade de pensamento e de expressão, isto é, a liberdade do humor, não pode ocorrer no âmbito do tribunal e da assembléia política. Como bem mostrou uma estudiosa da obra de Shaftesbury, o sujeito livre não pode ser de modo algum o ouvinte arrastado pela eloqüência, pelocommovere-movere do orador. Cf. Fabienne Brugère, “Humour et discours philosophique dans l’art de la conversation”. In: Théorie de l’art et philosophie de la sociabilité selon Shaftesbury. Paris, Honoré Champion, 1999, p. 127. Diferentemente, por exemplo de Hume, a crítica shaftesburiana da retórica vale, inclusive, para a eloqüência antiga, que é um estágio importante, mas inferior, da formação de um povo. Cf. Soliloquy: or Advice to an Author. In: Characteristicks, vol. I, pp. 238-240.

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