Famoso pelo humor sarcástico, pelos personagens marcantes e pelo traço característico, Laerte vem causando uma polêmica um tanto constrangida nos últimos anos, não tanto por seu trabalho, mas porque, progressivamente, vem vestindo-se de mulher.
Justamente por isso, a oitava edição da Balada Literária, iniciada ontem em São Paulo, pretendendo discutir a questão do gênero – do literário ao sexual –, homenageia o cartunista. Segundo o escritor Marcelino Freire, curador e criador do evento, “Engana-se quem acha que a literatura está apenas nos livros. Ou encastelada em seus redutos. A Balada Literária é exatamente o tipo de acontecimento que coloca todo mundo na mesma mesa e celebração. Todos os gêneros. Todos os parágrafos. Todas as vertentes. Tendências e tribos”. Não só homenageado, Laerte é o norte da programação do evento, em que e o transgênero torna-se interessante e frutífero tema de debate moral, político e artístico.
Laerte transpôs para os quadrinhos essa inquietação abstrata que, desde 2009, vem materializando-se na sua exploração do universo da vestimenta feminina. No livro Muchacha, coletânea de quadrinhos publicados originalmente no jornal Folha de São Paulo – que sucedem e dão prosseguimento à série sobre memórias televisivas publicadas no álbum Laertevisão –, são retratados os bastidores de uma série de televisão da década de 50, na qual o ator gay Djalma traveste-se e encarna uma cantora cubana para protagonizar espetáculos musicais. O livro é marcado pelo surrealista humor, que a Laerte é peculiar.
A decisão de Laerte de vestir-se de mulher é, por ele, associada à expressão e resolução de uma profunda crise. Segundo ele, marca um momento de necessária e profunda reinvenção de si mesmo. Em entrevista à revista Bravo, em setembro de 2010, ele esclarece que, no seu caso, o “crossdressing” “se refere menos à atividade sexual e mais à transposição de limites. É uma necessidade imperiosa de perscrutar e vivenciar os códigos femininos”. Para ele, a decisão une-se a uma mudança iniciada anos antes, reconhecida por uma fase “mais ‘filosófica’, que muitos intitulam de nonsense”, que ainda o caracteriza, apresar de que ressalta: “Rejeito […] o adjetivo nonsense para definir o meu trabalho. Nonsense pressupõe o caos, a ausência total de significado. Ocorre que minhas tiras buscam, sim, um sentido – mesmo que seja o de aplicar um golpe na lógica, o de implodir o senso comum”.
Como epílogo ao volume, há uma narrativa desenhada por Rafael Coutinho, filho de Laerte e coautor de Cachalote, trabalho desenvolvido com o escritor Daniel Galera.
A Companhia das Letras disponibiliza um trecho de Muchacha
Autor: Laerte
Editora: Companhia das letras
Preço: R$ 20,30 (96 págs.)